Mesmo derrotado nas urnas e ameaçado pelo impeachment, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que será substituído, hoje, pelo democrata Joe Biden, deve continuar como importante força política no país e no Partido Republicano. De acordo com especialistas, o apoio de correligionários ao julgamento político de Trump reflete o medo de enfrentá-lo nas primárias do partido, que vai decidir quem concorrerá às eleições presidenciais de 2024.
Ainda que tenha terminado o mandato com uma aprovação de 34%, segundo a última pesquisa Gallup — um dos menores índices apurados pelo instituto para a Presidência dos EUA —, Trump mantém um grande número de seguidores leais, sobretudo de extrema-direita. Também conta com o apoio de mais de 70% dos republicanos, que consideram a eleição de Biden ilegítima. No entanto, para analistas, Trump poderá ver a base de apoio migrar para outro líder populista de direita nos próximos quatro anos, enquanto será obrigado a responder a processos.
Na opinião de Juscelino Colares, professor de direito do comércio exterior e de ciência política da Case Western Reserve University (Ohio), a eleição de Biden não significa o fim do trumpismo e do populismo de direita. “Se lembrarmos que 40% dos atuais deputados republicanos foram eleitos nos anos da Presidência de Donald Trump, que apenas 10 deputados republicanos (5%) apoiaram o envio de artigos de impeachment ao Senado, que Trump obteve mais de 74 milhões de votos e que dois terços de todos os republicanos ainda o apoiam, sua influência é e continuará sendo forte”, diz.
Por mais polêmico que Trump tenha sido, segundo Colares, ele foi um fenômeno político, com alto nível de lealdade entre eleitores, “principalmente o pobre, o branco do meio rural e ou operário do meio urbano”. O professor acredita que “não existe a menor chance” de os republicanos abandonarem Trump no momento do julgamento político, à exceção dos poucos que prometeram fazê-lo. “Ele continua com muita força dentro do partido”, reforça.
Racha
Em uma avaliação sobre o panorama eleitoral em 2024, Colares lembra que ficou claro para o eleitor americano que existe um racha no partido Republicano: o establishment (ordem ideológica da elite política de um país) de Washington e os chamados outsiders. “Quem manda nos outsiders é Trump. Mas é interessante avaliar o que pode ocorrer no futuro. Talvez, surja uma nova liderança, mais ponderada, como o senador Ted Cruz, graduado em direito pela Universidade de Harvard e ex-procurador-geral do Texas”, pondera. “Do lado do establishment, temos a ala dos republicanos que se posicionaram contra Trump, entre eles, Liz Cheney, a filha do ex-vice-presidente Dick Cheney”, pontua.
Analista político com conhecimento sobre as relações partidárias nos Estados Unidos, Carlo Barbieri assinala que a pauta do impeachment tem muitos interesses. “Os democratas querem excluir Trump do processo eleitoral porque ele tem um peso fenomenal. Por parte dos republicanos, existem vozes divergentes. Há uma dezena de potenciais candidatos a presidente que estão interessados que Trump não tenha poder de influenciar o processo eleitoral”, avalia.
Apesar de reconhecer a força política de Trump, Barbieri ressalta que, uma vez fora do cenário político, a influência dele será declinante. “Em primeiro lugar, porque não tem simpatia dentro do próprio partido. No governo, ganhou grande espaço pela sua gestão, ao retirar soldados da guerra, ao reduzir o desemprego. Como seu prestígio foi resultado das ações, vai perdê-lo sem ter o que mostrar. Seu poder de barganha vai diminuir, fortalecendo os republicanos que se afastaram dele”, sustenta o analista.
James Green, professor de história do Brasil na Brown University, lembra que 71% dos republicanos não acreditam que Joe Biden foi legalmente eleito. “Isso quer dizer que mais de 70% dos republicanos estão com Trump”, afirma. “Além disso, a ultradireita, que se mobilizou para invadir o Capitólio, é um grupo muito fiel a ele. A maioria acredita nas conspirações, segundo as quais Trump é a salvação. Esse setor tem força nos Estados Unidos”, ressalta.
Medo
Green pontua que muitos candidatos estão com medo de Trump. “São a favor do impeachment porque acreditam que ele tem poder para derrotá-los”, diz. Por outro lado, segundo Green, dos 10 republicanos que votaram a favor do impeachment, grande parte é de distritos em que a maioria é republicana e tem raízes fortes no partido. “Independentemente de Trump enfrentá-los nas primárias, eles estão seguros. É o caso de Liz Cheney, que declarou que Trump foi responsável pela invasão do Capitólio, mas acredita que tem apoio para seguir representante do Wyoming”, afirma.
O professor norte-americano alerta, ainda, que Donald Trump enfrenta vários processos na Justiça, e que isso pode enfraquecer sua imagem. “Mesmo não sendo impedido, ele poderá ser acusado de fraude eleitoral na Geórgia, existem processos de fraude imobiliária no Estado de Nova York e de sonegação de impostos. Deve US$ 400 milhões a vários bancos”, enumera.
O pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos Roberto Goulart Menezes, professor visitante na Universidade Johns Hopkins, considera o termo trumpismo exagero. “Na literatura, denota uma era, um conjunto de mudanças que se estendem ao tempo. Trumpismo é preguiça mental para designar encontro de conveniência de um plutocrata, que é supremacista branco, misógino, racista e anti-imigrante, com quem concorda com essa agenda”, diz. “Trump encontrou conexão com esses grupos, que não são a maioria nos Estados Unidos. Ele catalisou essa agenda, mas esse movimento vai continuar. E, se aparecer um pior que Trump, eles vão seguir”, afirma.
Para manter a influência política, Menezes acredita que Trump teria que conquistar algum cargo no partido. “Dificilmente vai ganhar esse espaço”, sustenta. O especialista pondera, contudo, que, como ex-presidente, passará a ter uma infraestrutura de trabalho, com direito a palestras, com ganhos em torno de US$ 500 mil cada, para criar uma fundação com seu nome e uma agenda da sua escolha. “Além disso, ele é um comunicador, compra espaços na televisão e tende a ter sua presença nos meios de comunicação para se manter em evidência.”
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Rearrumando a legenda
Depois da passagem de Donald Trump pelo Partido Republicano, a legenda terá de se reconstruir para tentar voltar ao poder em 2024. Não existe consenso entre os especialistas sobre qual o melhor caminho para isso. Alguns apostam em uma postura mais de centro-direita, outros dizem que os erros do Partido Democrata poderão beneficiar o Republicano. E ainda há quem acredite que um novo líder de extrema-direita será capaz de angariar o apoio dos seguidores de Trump e manter o partido com chances de vencer as próximas eleições presidenciais dos Estados Unidos.
Para o analista político Carlo Barbieri, o partido terá que buscar uma posição mais ao centro se quiser voltar ao poder. “Trump ficará com o terço do eleitorado mais radicalizado, enquanto o centro do partido, que tem lideranças em Washington, vai buscar força para eleger uma base maior do que a de Trump”, aposta.
Segundo ele, os republicanos que ficaram omissos na gestão Trump vão querer retomar o espaço perdido. “Joe Biden saiu vencedor nas eleições de 2020 porque houve uma união em torno de um nome contra Trump. Todos os escândalos que poderiam atrapalhar foram suspensos. Assim que ele tomar posse, esses grupos vão tentar emplacar suas agendas e ganhar espaço”, explica.
Na opinião de Juscelino Colares, professor da Case Western Reserve University, a campanha de Joe Biden foi apoiada pelo bloqueio de informações negativas do democrata, com interesse à volta da ordem econômica mundial que se opõe às fricções comerciais com a China. “O retorno ao multilateralismo de Biden produzirá consequências similares às ocorridas na administração de Barack Obama: o crescimento bélico do Irã, maior tensão no Oriente Médio, com possível retorno de tropas americanas e dispêndio ainda maior do tesouro americano. Isso alimentará as chances de Trump ou de um novo líder populista de direita”, afirma.
“Guerra civil”
James Green, professor da Brown University, acredita que as pessoas que tiraram o aval a Trump vão voltar a apoiar os políticos republicanos. “Há uma ruptura no partido, que está quase à beira de uma guerra civil. É possível que os blocos de republicanos que se mantêm no poder possam lançar candidatos ainda mais radicais do que Trump”, sugere.
Na opinião de Roberto Goulart Menezes, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos, o Partido Republicano serviu como legenda de aluguel para Trump. “Ele não é uma pessoa de partido. Não teve nenhum cargo eletivo anterior a esse. Deixou um certo trauma entre os republicanos, tanto para os mais velhos — os políticos históricos, que alertavam para uma figura como Trump —, quanto para as novas lideranças”, destaca. Menezes lembra que, desde o início do governo, Trump não teve apoio de alguns importantes republicanos, que deverão voltar a dominar a legenda. “O ex-presidente George W. Bush nunca o apoiou”, exemplifica. (SK)