ESTADOS UNIDOS

Oficiais trans norte-americanos comentam revogação de veto por Biden

Ordem executiva assinada pelo presidente democrata põe fim à proibição de Trump para que americanos transgênero sirvam nas Forças Armadas. Casa Branca destaca diversidade. Oficiais que fizeram a transição de gênero falam ao Correio

Rodrigo Craveiro
postado em 26/01/2021 06:00
 (crédito: Mandel Ngan/AFP)
(crédito: Mandel Ngan/AFP)

Entre 1988 e 2013, Ann Murdoch serviu o Exército dos Estados Unidos até se aposentar como tenente-coronel. “Não revelei a ninguém o fato de que sofria de disforia de gênero, porque isso resultaria em minha separação do Exército. Mesmo com a revogação da política ‘Não pergunte, não diga’, que impedia os gays de servirem abertamente, as pessoas transgênero ainda eram discriminadas. Até que o republicano Donald Trump tuitou a proibição”, afirmou ao Correio a presidente da Associação de Veteranos Transexuais Americanos (Tava). De acordo com a Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero, a disforia de gênero “é uma aflição causada pela discrepância entre a identidade de gênero da pessoa e o seu sexo atribuído no nascimento”.

“Na condição de mulher transgênero enrustida, apresentando-me como homem, esconder o meu eu autêntico era extremamente tóxico. Tive uma carreira muito bem-sucedida, mas sei que poderia ter contribuído mais, se tivesse sido capaz de servir como meu eu autêntico”, acrescenta Murdoch. Por meio de uma ordem executiva, o presidente dos EUA, Joe Biden, revogou o veto de Trump que, desde julho de 2017, impedia 12.800 militares transexuais da ativa de servirem às Forças Armadas, que mantêm um contingente de 1,3 milhão. Com a decisão do democrata, todos os norte-americanos estão qualificados a seguirem carreira militar.

“O que estou fazendo é permitir que todos os americanos qualificados sirvam ao seu país uniformizados”, declarou Biden, ao assinar o decreto. Em nota, a Casa Branca informou que o “presidente Biden acredita que a identidade de gênero não deveria ser uma barreira para o serviço militar e que a força dos Estados Unidos está em sua diversidade”. “A América é mais forte, em casa e ao redor do mundo, quando é inclusiva. Os militares não são exceção. (…) Uma força inclusiva é mais eficaz”, acrescenta o comunicado. Além de proibir separações involuntárias, dispensas ou rejeições a realistamento, o decreto ordena a reincorporação às fileiras das Forças Armadas dos EUA de militares afastados com base na identidade de gênero.

“Eu saúdo a ordem executiva do presidente Biden restaurando a capacidade de transexuais qualificados para servirem abertamente nas Forças Armadas dos EUA. Homens e mulheres transgênero serviram abertamente desde que o governo de Barack Obama pôs fim à política discriminatória que proíbe pessoas trans no serviço militar. Naquela época, o serviço dessas pessoas foi exemplar”, diz Murdoch. “Pessoas transgênero provaram seu heroísmo em combate e estão na vanguarda da nova Força Espacial dos EUA.

O tenente-comandante Blake Dremann, 39 anos, nasceu mulher, modificou o gênero para masculino e alistou-se na Marinha há 15 anos. “Hoje, é uma grande vitória da resiliência e da força dos militares transgênero. Em centenas de ocasiões, eles mostraram que são mais do que capazes, apesar da discriminação. Além disso, o fato de o secretário da Defesa, Lloyd Austin; e o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Mark A. Milley, terem marcado presença na assinatura da ordem executiva é importante para mostrar apoio”, admite à reportagem o oficial de suprimento e logística de 39 anos, que mora em Mechanicsburg (Pensilvânia).

Prontidão e coesão

Para Dremann, Trump recebeu “conselhos ruins de pessoas que se sentiam desconfortáveis com a presença dos transexuais na caserna”. “O debate envolve custos, prontidão e coesão da unidade. Os custos são minúsculos. A questão da prontidão não é levantada quando mulheres têm filhos, o que as deixa impossibilidades de serem enviadas a missões no exterior por 21 meses. Em relação ao argumento sobre a coesão da unidade, uma equipe fracassada tem menos a ver com seus membros do que com a lidernaça”, observa.

Moradora de Columbia (Maryland), Alice Ashton, 41, aceitou-se mulher em 2015 e fez a transição de gênero em 2016. Em 30 de junho do mesmo ano, pouco antes de Trump reinstituir o veto aos militares transgêneros, ela se aposentou. “A proibição de transgêneros nas Forças Armadas dos EUA era do tipo ‘Não pergunte, não diga 2.0’. Eu tive a sorte de ser eu mesma enquanto servia, mas muitos que vieram depois de mim não o foram”, lamenta. Alice acredita que a decisão de Biden possibilitará que as pessoa sejam elas mesmas e se mostrem honestas com os companheiros de armas. “É horrível ter que esconder algo tão grande sobre você, mesmo das pessoas com quem você serve todos os dias”, desabafa ao Correio.

Alice lembra que, apesar de jamais comprovado, Trump teria encomendado um “estudo” sobre os militares trans a pedido de grupos de ódio, como o “Foco na Família” e a Heritage Foundation. “A guinada de Trump sobre o tema causou problemas de moral e de prontidão nas tropas. Os comandantes não tiveram clara orientação sobre como seguir adiante por um ano e meio. Isso significa que pessoas com cargos cruciais estavam em um ponto em que a unidade não sabia se teriam permissão para permanecerem naquela posição ou se precisariam ser substituídas.”

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Reputação em xeque

“A política do governo do ex-presidente Donald Trump, que essencialmente proibiu todos os transgêneros de servirem abertamente e de entrarem nas forças armadas, caiu em face do julgamento profissional do Estado-Maior Conjunto e da análise de especialistas da Rand Corporation. O consenso entre todas as principais associações médicas era de que militares transexuais podem servir sem discriminação, ante o desempenho comprovado deles.

Trump lançou dúvidas sobre a reputação das Forças Armadas enquanto meritocracia, na qual as pessoas são julgadas apenas por sua habilidade, não pela identidade. Alguns norte-americanos intensificaram as chamas da transfobia como um tema de ‘guerra cultura’, a fim de deteriorar o relacionamento entre os cidadãos e criar divisões, promovendo os próprios objetivos políticos.

Eles disseminaram informações inverídias sobre pessoas trans, assim como mentiras sobre muitos outros temas. Infelizmente, semearam dúvidas sobre a disforia de gênero. Convenceram uma minoria considerável de americanos de que as pessoas trans são, física e psicologicamente, inaptas para o serviço, apesar de dados esmagadores do contrário. Felizmente, a maioria dos americanos, de todos os segmentos da sociedade, entende que pessoas trans podem e têm servido nas mais exigentes funções nas Forças Armadas com distinção.” Ann Murdoch, tenente-coronel reformada e presidente da Associação de Veteranos Transexuais Americanos (Tava).

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“Eu servi por 20 anos nas Forças Armadas — seis na Força Aérea e 14 na Marinha, como linguista. Quando assumi a condição de transgênero, meus colegas me aceitaram totalmente, mas algunas pessoas mais velhas na liderança me incomodaram. Fui acusada de usar rímel no trabalho, quando eu não o estava fazendo. Tentarem me dizer o que eu não poderia vestir depois do expediente. Eles cederam, pois eu conhecia meus direitos. Outros trans sofreram o pior, ao serem informados de que seriam expulsos. A discriminação existia, mas também o apoio. A experiência de cada pessoa foi diferente.” Alice Ashton, 41 anos, moradora de Columbia (Maryland), militar transexual reformada.


“Tenho servido na Marinha dos EUA desde 2006, como oficial de suprimento e logística. Sou tenente-comandante e fui escolhido, em setembro último, para a promoção à patente de comandante. Fui enviado a missões por 11 vezes, cinco a bordo do cruzador USS Denver, uma ao Afeganistão e cinco com patrulhas estratégicas no submarino USS Maine. Recebi vários prêmios e elogios. Tive a sorte de não sofrer discriminação como transgênero no serviço militar. Mas sofri preconceito sobre outras coisas, como ser designado mulher, antes mesmo de minha transição, e por ser solteiro sem família.” Blake Dremann, 39 anos, moradora de Mechanicsburg (Pensilvânia), militar transexual.

 

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