Donald Trump afastou-se de Cuba, manteve um diálogo ineficaz com a Coreia do Norte e abandonou o acordo nuclear com o Irã, costurado desde 2015 para limitar a proliferação de armas nucleares no país. Ao assumir a chefia da maior democracia do mundo, Joe Biden vai precisar sentar à mesa de negociações e desfazer boa parte das ações empreendidas pelo antecessor no campo das relações internacionais. Escolhido por Biden como secretário de Estado, Antony Blinken já acenou alguns caminhos a serem trilhados, como a manutenção da pressão sobre Pequim e o investimento em um pacto “mais forte e duradouro com o Irã”.
Blinken ainda prometeu, por exemplo, romper com a diplomacia unilateralista de Trump. “Podemos revitalizar nossas alianças fundamentais”, afirmou o secretário de Estado em sessão para a sua confirmação pelo Comitê de Relações Exteriores do Senado. “Juntos, estamos em uma posição muito melhor para contra-atacar as ameaças semeadas por Rússia, Irã e Coreia do Norte e defender a democracia e os direitos humanos.” Blinken disse que os Estados Unidos retornarão ao acordo com o Irã se Teerã voltar a cumpri-lo, enquanto buscará com os outros signatários fortalecê-lo e torná-lo mais duradouro. “Mas, usaremos isso como plataforma com nossos aliados e parceiros, que voltarão a estar do mesmo lado que nós, para buscar um acordo mais forte e duradouro”, acrescentou.
As palavras de Blinken seguem o mesmo caminho da mensagem repetida pelo presidente eleito de virar a página do governo Trump que, durante quatro anos, deslocou seus aliados históricos, simpatizou com autocratas, quebrou acordos internacionais e desprezou organismos multilaterais. Para isso, Biden selecionou diplomatas experientes que faziam parte da gestão de Barack Obama, uma equipe pensada para retomar uma política externa mais tradicional.
Com o Irã, assim como com Cuba, será preciso sentar à mesa para voltar às negociações. “O desafio do Biden é desconstruir o que o Trump desconstruiu. Porque havia uma perspectiva de, pelo menos, uma tentativa de normalização das relações dos EUA com esses três países que foi conquistada durante as administrações Obama, ainda que debaixo de muitas controvérsias. Não havia unanimidade, mas havia se alcançado acordos possíveis”, explica Alcides Cunha Costa Vaz, coordenador do grupo de estudos e pesquisa em política e segurança internacional (GEPSI) da Universidade de Brasília (UnB).
Armas atômicas
O Irã é um dos nós mais complicados a ser desatado pelo novo presidente americano. Em maio de 2018, Trump anunciou a retirada unilateral do Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), o acordo assinado em 2015 com China, Reino Unido, França, Rússia e Alemanha. Em troca da promessa de não proliferação de armas atômicas, o acordo suspendia sanções ao Irã. Ao abandoná-lo, os Estados Unidos trouxeram de volta uma série de sanções, e a república persa se sentiu livre para avançar no seu programa de enriquecimento de urânio. “Parecia um acordo satisfatório porque tirava de perspectiva o enriquecimento de urânio acima de 90%, mantendo atividades nucleares dentro de patamares aceitáveis diante da proliferação de artefatos nucleares”, explica o professor Costa Vaz.
Segundo ele, a administração Trump aproximou-se de Israel e afastou-se do mundo árabe, abrindo uma fissura entre as lideranças no Oriente Médio e instalando uma fragilidade que pode favorecer o programa iraniano. “Hoje, as rivalidades entre Irã e Arábia Saudita correm de forma muito mais solta e desimpedida porque não tem mais tanto a presença do aliado norte-americano apoiando a Arábia Saudita. Há uma fissura importante também no mundo árabe”, diz. “Não há uma liderança naquela região hoje, e trazer o Irã de volta à mesa de negociações e tendo o argumento de que quem saiu do acordo foram os americanos é difícil.”
A expectativa é de que Biden já faça anúncios em relação ao Irã ainda hoje, após a posse. Hossein Gharibi, embaixador do Irã no Brasil, explica que as autoridades iranianas esperam que as sanções impostas por Trump sejam revogadas. “Não precisamos discutir nada no momento, apenas pedir ao governo dos Estados Unidos que honre suas obrigações legais”, diz. “Não temos preferência por Trump ou Biden, a não ser que este último revogue as sanções e reconstrua a situação de janeiro de 2017. O que é importante para nós, agora, é como a Casa Branca se comporta, e não as meras promessas.”
Terrorismo
Com Cuba, a expectativa é outra. Durante os últimos quatro anos, Trump virou as costas para a diplomacia com a ilha, endureceu sanções que Barack Obama havia amenizado, como a possibilidade de envio de dinheiro por parte de familiares americanos de origem cubana, a concessão de vistos de visita e a circulação de navios de cruzeiro na ilha caribenha. Para fechar esse capítulo, nas últimas semanas de governo, o secretário de Estado, Mike Pompeo, anunciou que Cuba voltou para lista de países que patrocinam o terrorismo. “Esse cenário pode mudar drasticamente porque a política de pressão máxima implantada por Trump é o contrário da política de relação construtiva implementada por Obama”, explica Sebastian Arcos, do Instituto de Investigaciones Cubanas da Florida International Institute.
Segundo ele, Obama tentou convencer as lideranças cubanas a empreender reformas profundas com uma política de aproximação diplomática e com relações comerciais, enquanto Trump tentou forçar essas reformas isolando e sancionando o regime castrista. “São estratégias opostas”, aponta Arcos. Os cubanos, ele garante, esperam que Biden volte às políticas implementadas por Barack Obama. Para o encarregado de negócios de Cuba no Brasil, embaixador Rolando Antonio Gómez González, Biden e sua equipe conhecem a ilha o suficiente para saber que ela nunca patrocinou terrorismo. “Confiamos que essa verdade tenha influência na equipe de governo do novo presidente. O governo de Biden pode reverter essa classificação, como Obama fez antes”, diz Gómez González.
No caso da Coreia do Norte, as expectativas devem ser mais baixas do que em relação ao Irã e a Cuba. Joshua H. Polack, especialista em não proliferação do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury de Monterey, na Califórnia, lembra que os nomes escolhidos por Biden para lidar com a área são veteranos da administração Obama que preferem limitar as interações com a Coreia do Norte por acreditar que Pyongyang não é um interlocutor muito confiável.
“fortaleza”
Além disso, Biden precisa lidar com uma grave situação de saúde pública imposta pela pandemia, voltar para o acordo de Paris, fazer acordos com a Rússia e retomar negociações com o Irã. “A Coreia do Norte não será uma prioridade, a não ser que ela force uma entrada na agenda”, acredita o especialista. Para ele, se Trump criou algum obstáculo para Biden ao lidar com a Coreia do Norte, foi o de dificultar as relações com a China. “A competição militar com a China foi uma peça central da política de defesa de Trump. Ele lançou a guerra comercial com a China assim que antecipou o encontro com Kim Jong Un. E também falhou ao tentar conter o teste nuclear da Coreia do Norte”, diz.
A gestão Biden deve manter “a posição mais dura frente a China”, segundo o novo secretário de Estado. Para Blinken, Donald Trump “tinha razão” ao adotar medidas nesse sentido. “O princípio básico era correto. Devemos enfrentar a China de uma posição de fortaleza, não de fragilidade”, disse, ontem, aos senadores, acrescentando que isso implicava “trabalhar com os aliados em vez de difamá-los, participar e liderar as instituições internacionais em vez de abandoná-las”.