Biden mostra ocartão de visita
Com dois meses de mandato, o novo presidente dos Estados Unidos segue em ação, na frente externa, para demarcar claramente as linhas de atuação que a primeira potência imprimirá nos próximos quatro anos. Após o período errático e imprevisível de Donald Trump, a chegada de Joe Biden à Casa Branca foi aguardada em certos círculos como uma virada de 180 graus.
A expectativa foi plenamente satisfeita, por exemplo, na abordagem multilateral para temas como mudança climática e combate à pandemia. Foi com rejeição frontal ao estilo “rolo compressor” do antecessor que Biden se dirigiu aos aliados históricos da Europa. A mudança de discurso e ação se estendeu até ao Irã, no tema complexo e delicado do programa nuclear.
Mas, uma semana depois de se apresentar para o diálogo com o regime islâmico sobre o acordo assinado em 2015 por Barack Obama, e renegado por Trump, o presidente americano lançou sua primeira operação militar. O alvo foram milícias pró-iranianas que atuam na fronteira entre Síria e Iraque.
Sem açodamento, mas também sem protelação, o veterano político democrata vai apresentando ao mundo o seu cartão de visita e os seus parâmetros para as relações internacionais.
Aos amigos, nem tudo
Aos que acompanham e observam as redefinições de política externa em Washington, não escapou a coincidência entre o primeiro bombardeio de Biden e outro movimento sensível no campo minado do Oriente Médio. Depois de autorizar o ataque aos aliados de Teerã, Biden mandou recado também à Arábia Saudita, aliado que forma com Israel o eixo de contenção ao Irã.
Em telefonema ao rei Salman, o presidente reafirmou alianças e compromissos no terreno da segurança. Mas não se furtou a lembrar a importância que Washington dá a “aos valores universais dos direitos humanos”. A conversa se seguiu à leitura, por Biden, do relatório da CIA sobre o assassinato, por agentes sauditas, de um jornalista dissidente sequestrado na Turquia. O informe, cuja publicação foi autorizada, implica no episódio, como mandante, o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, apontado como o verdadeiro chefe de governo do reino.
Geopolítica da vacina
Os observadores do cenário regional aguardam agora a reação dos EUA e da Europa em torno da controvérsia que irrompeu em torno do tratamento por Israel à distribuição de vacinas contra a covid entre a população palestina que mantém sob ocupação. No noticiário estritamente voltado para a pandemia, o governo israelense encabeça o ranking da imunização, quando se considera a porcentagem de população imunizada.
O sucesso doméstico inspirou o premiê Benjamin Netanyahu a oferecer doses excedentes de vacinas para países aliados, ainda que distantes no mapa. As autoridades israelenses apontaram a Autoridade Palestina, titular nominal do governo autônomo dos territórios da Cisjordânia e de Gaza, como responsável pela imunização nas áreas sob sua jurisdição.
Uma parcela considerável da população palestina na Cisjordânia está em áreas sujeitas a controle militar israelense, por conta da presença próxima de colônias judaicas. A Faixa de Gaza, embora não tenha tropa nem população civil do Estado judeu, se encontra virtualmente sob cerco — por terra, mar e ar. Em resumo, as vacinas só chegarão aos palestinos com o beneplácito de Israel.
A parte que cabe
A opção de priorizar aliados nos esforços de imunização recoloca, para a diplomacia brasileira, a questão de como abordar o combate à pandemia no âmbito sul-americano ou mesmo latino-americano. Não apenas Israel, mas países de porte político considerado intermediário, como a Índia, fazem da vacina um instrumento de política externa. O Brasil sentiu na pele o impacto dessa realidade quando se viu no fim da fila para a aquisição de imunizantes e insumos.
Na vizinhança mais imediata, a parte que lhe cabe no latifúndio das Américas, a escolha que se oferece ao Planalto e ao Itamaraty é quanto à maneira de abordar o desafio comum. O Brasil tem o peso requerido para liderar um movimento conjunto na direção de adquirir e produzir ampolas e organizar a aplicação segundo um critério de tornar o subcontinente seguro o quanto possível — para todos. Ou pode replicar o “salve-se quem puder”, com as consequências imediatas e posteriores.
Suspeito de sempre
As atenções se voltam, em primeiro lugar, para a maneira que o governo Jair Bolsonaro adotará para lidar com o fluxo incessante de imigração nas fronteiras com a Venezuela. Os riscos associados à pandemia se cruzam com a orientação, anterior à covid, a respeito de receber e assentar os venezuelanos recém-chegados.
Na cruzada contra a disseminação de novas variantes do coronavírus, as autoridadades sanitárias jogam papel fundamental em qualquer opção que o Planalto e o Itamaraty escolham para abordar as relações com o governo vizinho identificado como o “suspeito de sempre” — para aproveitar a expressão que deu título a um filme recente, na onda de uma fala do clássico Casablanca.
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