Conexão diplomática

Lula age como quem não pede licença nem mostra documento para fazer política externa

por Silvio Queiroz
postado em 19/03/2021 21:58

Geopolítica no radar para 2022

Com o Brasil no centro das atenções e das preocupações relacionadas à covid — na posição de país que concentra hoje o contágio e as mortes —, a geopolítica desenhada pela pandemia se coloca desde logo entre os fatores capazes de balizar a disputa presidencial do ano que vem. Não apenas pesam os números que qualificam o país na ala destinada a isolar as catástrofes sanitárias. É a disputa de rumos para a condução da crise sanitária global que se antecipa como ingrediente da corrida pelo Planalto.
A estratégia externa para o enfrentamento do coronavírus entrou no cardápio pela escolha de um recém-chegado à mesa. Desde que uma decisão do Supremo recolocou Lula no páreo — ao menos até orientação em contrário —, voltou à cena a diplomacia agressiva praticada por ele nos oito anos de mandato. Ainda que na posição de ex-presidente com direitos políticos pendentes, a perplexidade da opinião pública com o momento crítico da pandemia no Brasil se apresentou como plataforma para o eventual candidato de 2022.

Sem lenço, sem documento

Emissários externos que acompanham há mais tempo os acontecimentos por aqui chamam a atenção para um traço essencial da reestreia de Lula. “Ele fala como se ainda fosse o presidente que a gente conheceu”, comenta um diplomata europeu escolado nas relações com o Planalto e o Itamaraty pela perspectiva de Bruxelas, quartel-general da UE. De acordo com esse interlocutor, não passou despercebido o relançamento informal da estratégia que notabilizou a dupla Lula-Celso Amorim.
Em duas entrevistas, com intervalo de uma semana, o ex-presidente não apenas ocupou o noticiário internacional. Falando à CNN, convidou Joe Biden a chamar os colegas do G-20 a uma reunião extraordinária para discutir “um único tema: vacina”. A proposta voltou à baila, depois, dirigida ao presidente francês, Emmanuel Macron. Os dois, por sinal, devem ter Bolsonaro pela frente, em breve, para discutir as mudanças climáticas, tema que opõe o presidente brasileiro a ambos.
“Lula age como quem não pede licença nem mostra documento para fazer política externa”, analisa o diplomata europeu. “Ele apenas vai ocupando o espaço vazio, sem mostrar documento para entrar na sala. Ele sabe que os outros o conhecem, que vão ouvi-lo. Parece que não perdeu o costume de governar.”

Fila anda

Simbolismos à parte, o que transpira da movimentação do ex-presidente, por fora daquilo que diz respeito à disputa eleitoral do ano que vem, é a disposição de se colocar à mesa e influir na condução do combate global ao vírus sem esperar pela faixa presidencial. É como os parceiros externos interpretam a intevenção enfática de Lula sobre a urgência de tratar pelo sistema multilateral a distribuição das vacinas disponíveis entre os países, de maneira a equalizar o poder de compra dos mais ricos e a demanda dos mais pobres.
“Quando ele faz essa intervenção, a coisa tem dois sentidos”, analisa um veterano diplomata brasileiro. “Primeiro, claro, tem a discussão que ele quer provocar nos meios, que é um jeito de dizer ‘eu voltei’”, observa. “Mas tem outra coisa, que independe do resultado dessa pregação: para quem olha de fora, o Lula está recolocando o Brasil no debate internacional, com as posições que ele mesmo representou como presidente. Ele vai ocupando esse lugar e nem quer saber se agora é o Bolsonaro, porque ele tem um reconhecimento próprio e decidiu colocar isso na mesa.”

E os russos?

Não passa despercebido a quem observa os movimentos recentes no tabuleiro global que as posições se rearranjam no âmbito de uma troca de guarda essencial na Casa Branca. Em dois meses de governo, Joe Biden mudou a abordagem da pandemia e sepultou o “negacionismo envergonhado” de Donald Trump. Recolocou os EUA nos trilhos do sistema multilateral, com o retorno à OMS e ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
Mas, ainda que opositor frontal do America First encarnado pelo antecessor, é da hegemonia global americana que o presidente democrata cuida com a turnê dos secretários de Estado e de Defesa pela Ásia. Em particular, os dois emissários de mais alto nível que Biden poderia enviar cuidam de explorar os caminhos para uma recomposição das relações com a China, rival identificado como o grande desafio do século, para Washington, desde o governo Obama.
Para o Brasil, que tem nos EUA a coordenada principal de política externa desde a posse de Jair Bolsonaro, resta atentar para esse e outros movimentos do aliado preferencial. Biden entrou em linha de atrito com a Rússia, que forma o quinteto emergente com China, Brasil, Índia e África do Sul. Da perspectiva de Brasília, captar com precisão o balanço entre Washington, Pequim e Moscou é chave para a escolha de pesos e medidas na frente diplomática.

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