Missão é recompor o Itamaraty
Muita expectativa cercou a posse, no início da semana, do novo ministro das Relações Exteriores. Carlos França tomou posse para suceder Ernesto Araújo em condições um tanto peculiares. Se a substituição do chanceler em meio de mandato não é propriamente novidade, nunca antes neste país um titular do Itamaraty deixou o cargo sob protestos de uma carta aberta assinada por mais de 300 diplomatas.
No foco das críticas internas não esteve, propriamente, a política externa definida para o governo Bolsonaro. Diplomatas democratas seguiram carreira e cumpriram funções no MRE sob o regime militar de 1964-1985 — e sob outros regimes de exceção. Muitas vezes, discordavam da orientação traçada no Planalto. Alguns chegaram a ser punidos por denunciar crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos.
A novidade, na primeira metade do atual mandato presidencial, foi o mal-estar generalizado no corpo profissional da diplomacia brasileira com a condução da atividade pelo ministro da pasta. Ainda mais por se tratar de diplomata de carreira, Ernesto Araújo deixou o cargo com um balanço compartilhado por subordinados de orientações políticas distintas e até divergentes: nesses dois anos e pouco mais, o chanceler se destacou como fator complicador para o exercício cotidiano das relações exteriores.
Mensagem inaugural
O novo chanceler tomou posse com um discurso que parece espelhar consciência do quadro com que se defronta — e com a própria condição. Carlos França pertence, basicamente, à geração de Ernesto Araújo. Como o antecessor, ascendeu ao cargo de embaixador recentemente. Assim como o primeiro escolhido de Bolsonaro, jamais chefiou uma missão brasileira no exterior, mas nem ao menos respondeu por algum departamento do MRE.
Basicamente, a experiência do novo ministro, no posto mais alto da hierarquia diplomática, se confina ao cerimonial do Planalto. Por força do momento, teve convivência com o atual presidente e, naturalmente, goza de sua confiança. Mas, embora tudo indique que comunga das opções de Bolsonaro para a política externa, França deu a entender, no discurso de posse, que compreende os desafios colocados para o Itamaraty, ao menos no horizonte imediato.
Vizinhos inquietos
Desde logo, o novo chanceler terá de reconstruir relações de confiança na vizinhança. Ernesto Araújo encerrou o período como titular do Itamaraty em uma cúpula virtual do Mercosul na qual o Brasil era — como segue sendo — o foto imediato de preocupação dos sócios. Todos os governos sul-americanos mantêm medidas de restrição à entrada de brasileiros ou de viajantes com passagem por aqui, no esforço de conter a nova onda do coronavírus.
Se o hegemonismo causa prejuízos à diplomacia, igualmente ficam arranhadas a imagem e a posição de um país que, capacitado à liderança por natureza, deixa vago o espaço. “Quem vai ocupar o lugar do Brasil na América do Sul?”, perguntava um diplomata latino-americano, em meio à crise da nossa política externa. “Ninguém tem o peso e o alcance diplomático de vocês.”
Vacina ainda que tarde
No discurso inaugural, o novo chanceler enfatizou como foco central de sua gestão o estabelecimento de conversações e entendimentos para a obtenção urgente de vacinas para que o país possa avançar de maneira consistente na imunização, de forma a retomar o quanto antes a atividade econômica. França reconhece, porém, que o país chega atrasado ao “dá cá o meu” global. E chega em condições desfavoráveis, considerando que disputa doses com concorrentes em condição financeira incomparavelmente melhor, como a União Europeia.
Nos círculos diplomáticos, a expectativa é de que França seja capaz de se valer de algo que a experiência limitada lhe oferece. Embora de rodagem também limitada, Ernesto Araújo atraiu atenção para si pelo ativismo, pelo proselitismo. Já como titular do Itamaraty, não se furtou a comprar disputas de ordem “ideológica” ou “moral”, nas quais de indispôs frontalmente com um parceiro do porte da China.
Em relação ao antecessor, o novo ministro tem a seu favor o fato de não ter se comprometido publicamente com posições, propaladas pelo presidente, que ainda hoje dificultam as relações com Pequim — e o fluxo regular de vacinas e insumos para permitir que o governo brasileiro possa traçar um plano consistente e verificável de imunização contra a covid.
Desafios à vista
Recolocar o Itamaraty na posição de interceder e interferir de maneira efetiva nas situações globais que afetam diretamente o país, como a pandemia, é tarefa primordial para o diplomata de carreira que assume agora a missão de recompor o ministério — internamente, para começar.
Como observaram os que são familiarizados com a dinâmica da diplomacia e com a do Planalto sob Jair Bolsonaro, Carlos França terá pela frente a missão de encontrar caminhos para que o corpo profissional do MRE, reconhecido e valorizado mundialmente, possa exercer seu trabalho cotidiano sem que a pregação ideológica do governo se interponha como obstáculo.
Seu dilema será a escolha entre as necessidades da pasta e as conveniências e preferências do presidente.
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