O cipó de aroeira volta no Itamaraty
Bem menos pelo discurso de Jair Bolsonaro do que pelo sentido geral da participação do Brasil na cúpula ambiental convocada pelos EUA, prevalece entre os que acompanham o cenário diplomático por aqui a impressão de que falou mais alto, ao menos por ora, a apreciação do tema pelo corpo profissional de Estado instituído desde a independência para formular a política externa.
Na fala do presidente, sujeita a pesada crítica e cercada de indisfarçada desconfiança, já não sobressaíram os desafios “patrióticos” aos que cobram do país medidas mais drásticas e eficazes para conter o desmatamento e as emissões de gases causadores do aquecimento global. O tom, na leitura inicial dos observadores, foi de um governante que não depõe as armas, mas aceita os termos de uma rendição — até para fazer passá-la por parcial.
À espera de indicações mais claras de como se comportará o Itamaraty com a troca do “olavista” Ernesto Araújo por Carlos França, contemporâneo do antecessor, mas ostensivamente mais discreto, os parceiros externos contabilizam vantagem parcial para as linhas mestras da política externa brasileira nos últimos anos.
Tem juízo
A tomada ostensiva de posição de Jair Bolsonaro e de seu entorno mais íntimo em apoio à campanha — frustrada — de Donald Trump à reeleição chegou a despertar preocupações, por aqui, quanto a possíveis represálias do novo morador da Casa Branca, Joe Biden. Familiriazado — até certo ponto — com os vaivéns da política brasileira desde quando era vice de Barak Obama e uma espécie de oráculo para política externa, Biden nunca mostrou ansiedade por “enquadrar” algum ocupante do Planalto — fosse Dilma, Temer ou Bolsonaro.
Aos olhos de quem convive há décadas com movimentos de aproximação e distanciamento entre Brasil e EUA, ao longo da história recente, Washington tem um retrato razoavelmente fiel de quem são os interlocutores em Brasília. Prevalece, até aqui, a apreciação de que, afinal, as afinidades de Estado proclamadas por Bolsonaro na campanha de 2018 se expressam no esforço ostensivo do Planalto para aplainar as relações bilaterais.
Na surdina
Um indicador confiável de que a possível recalibragem no Itamaraty foi o ensaio de alinhamento, na cúpula ambiental, com Índia e África do Sul. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, com o Itamaraty confiado sucessivamente aos tucanos José Serra e Aloyisio Nunes, o Brasil vinha desfilando, nos foros que se apresentassem, a opção por estabelecer uma nova estratégia de inserção global.
Em lugar da política sul-sul, traçada e executada no governo Lula pelo chanceler Celso Amorim, entrou no foco a reorientação no sentido de buscar convergências com os chamados “parceiros tradicionais” — EUA e União Europeia, principalmente. Foi quando tomava essa nova posição no tabuleiro geopolítico que o país foi surpreendido pela eclosão da pandemia de covid.
Amigos para sempre?
O movimento esboçado na cúpula virtual presidida por Biden exige atenção por mais tempo, para que se possa deslindar o sentido real e o alcance da aparente manobra. Índia e África do Sul integraram com o Brasil, nos anos Lula-Amorim, o Forum Ibas. Descrito pelo então chanceler como o segundo círculo mais interior da estratégia de inserção global, o Ibas se apresentava ao mundo como a concertação entre três grandes democracias ditas emergentes. Acabou engolido pelo Brics, que nasceu com China e Rússia como âncoras dos pontos de vista econômico e militar.
Emissários externos familiriazados com a condução cotidiana da diplomacia brasileira apostam que, na medida em que encontrar espaço na orientação de governo, o corpo profissional do Itamaraty tende a seguir explorando os caminhos traçados sob a batuta de Celso Amorim e do braço direito, o embaixador Samuel Pinheiro, que influiu na formação de algumas turmas do Instituto Rio Branco.
Prova dos nove
Enxergado na esfera mais imediata de inserção externa do país, o Mercosul se oferece como teste conclusivo para determinar os parâmetros que prevalecerão na formulação da política externa com a partida do “olavista” Ernesto Araújo. Embora tido como também simpático às noções básicas adotadas pelo predecessor — e, antes de tudo, pelo presidente —, Carlos França deu pistas sobre o lugar que vislumbra para a integração sul-americana na estratégia do governo Bolsonaro.
Em breve aparição durante sessão extraordinária do Senado destinada à discussão sobre o tema, o novo titular do Itamaraty frisou o compromisso do governo Bolsonaro com a vocação “comercial” do bloco regional. Flexibilizar as normas comuns, com abertura para que os países-membros fechem acordos comerciais próprios fora dos limites do bloco, é a prioridade declarada do governo brasileiro.
Vão pra Cuba?
Fora do programa e da previsão do Planalto e do Itamaraty, outra encruzilhada se esboça, da já chamada “diplomacia da vacina”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem de dar certificado de excelência para a vacina anticovid Soberana, desenvolvida em Cuba. A depender do caminho seguido daqui para a frente, será mais uma opção disponível para o esforço de imunização na América Latina.
Na década passada, Brasília e Havana fizeram parceria bem-sucedida para fornecimento em massa de vacina contra a meningite para a África. O acordo envolvia a presença de cientistas e técnicos cubanos na BioManguinhos, unidade da Fiocruz. A capacidade produtiva brasileira garantia o volume de imunizantes necessária ao programa. Como contrapartida, os visitantes repassavam conhecimentos sobre o processo.
A Soberana é a primeira vacina anticovid desenvolvida na América Latina a obter reconhecimento científico pela OMS.
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