Estragos para além da covid
Não será apenas para o enfrentamento imediato da pandemia que as posições e manifestações do governo Bolsonaro em direção a parceiros estratégicos terão consequências. Em particular, a desatenção para com as menções hostis feitas à China seguirá cobrando seu preço mesmo no horizonte — ainda distante e invisível — do período que se seguir à crise sanitária.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tido como oráculo do presidente desde a campanha de 2018, foi apenas o último de uma série que perpassa o círculo mais próximo do Planalto — os filhos de Bolsonaro, o ex-chanceler Ernesto Araújo, o ex-ministro Abraham Weintraub. No mais imediato, o “Posto Ipiranga” escolheu um momento crítico da campanha de vacinação para dizer, em reunião sobre política de saúde, que “o chinês inventou o vírus e a vacina dele é menos efetiva”.
Com o Butantan e a Fiocruz na fila para importar imunizantes e insumos produzidos lá, a incontinência do ministro, na melhor das hipóteses, não ajuda os esforços cotidianos da diplomacia profissional para acelerar a produção e distribuição de vacinas no país. Mas o descuido com o maior parceiro comercial do país tem implicações que se prolongam para além da pandemia: mercados para exportação, sobretudo de commodities, serão fator determinante para qualquer esforço de recuperação da economia.
Quem fala?
Mais do que o teor da desfeita ou mesmo que a circustância — uma reunião que estava sendo transmitida nas redes sociais —, emissários externos e observadores enxergam no episódio um elemento que merece atenção. Ele se seguiu à substituição de Araújo, um “olavista” ostensivo, pelo embaixador Carlos França, diplomata de perfil mais discreto e menor desenvoltura pública.
Em seu debut no cargo, na cúpula ambiental convocada pelos EUA, a presença do novo chanceler complementou uma coreografia de tons moderados. Não apenas o discurso do presidente acenou com gestos no esforço global contra as mudanças climáticas: nos bastidores do encontro, o Brasil encontrou terreno para um alinhamento pontual com Índia e África do Sul — um sinal de disposição para resgatar aspectos pragmáticos na política externa.
França “falou” pelo silêncio, mas a indiscrição de Guedes sobre a China — para alguns, um ato falho — recolocou para os parceiros do Brasil a pergunta sobre quem, afinal, dará o tom na frente diplomática. E, na visão de um diplomata europeu que serviu por alguns anos em Brasília, o que transpareceu foi a fragilidade política do Itamaraty, na hierarquia não escrita do governo Bolsonaro. “Você imaginaria um ministro da Economia fazendo uma dessas e o Celso Amorim sem dizer nada?”, comparou, invocando o chanceler que acompanhou Lula nos oito anos de mandato.
Tango, milonga e guarânia
Como desdobramento inevitável, retorna à atenção dos que examinam a atuação externa do país o encaminhamento das tarefas do Mercosul. Se a cúpula ambiental marcou a estreia de Carlos França, a reunião entre os chefes de Estado do bloco sul-americano foi a despedida de Ernesto Araújo. Nela, à parte o gelo quebrado com o colega da Argentina, Alberto Fernández, foi Bolsonaro quem se fez notar para além das palavras: deixou o ambiente virtual do encontro antes do encerramento, enquanto os demais sócios seguiam as discussões.
Ao fim do primeiro ano de mandato, quando se recusou a cumprimentar pela vitória o peronista Fernández — cuja vitória classificou como “um desastre” para a Argentina —, o presidente brasileiro via em torno de si um cenário francamente favorável no Mercosul. Com a direita no governo também no Uruguai e no Paraguai, Bolsonaro se permitia até exibir como opção um “escanteio” no principal sócio do país na vizinhança.
Na cúpula presidida pela Casa Rosada, porém, voltaram à mesa questões existenciais do projeto de integração, em pleno aniversário de 30 anos. A demanda, principalmente do Uruguai, mas acompanhada pelo Brasil, de que os países-membros possam firmar acordos comerciais extra-bloco. A aspiração do Paraguai a medidas e políticas preferenciais, destinadas a equalizar distâncias econômicas e sociais entre os parceiros. A renitência da Argentina em defender o (pouco) que resta da sua indústria.
Para atuar como pivô da empreitada regional, o governo brasileiro terá de harmonizar os ritmos descompassados dos demais.
Garrincha em campo
De volta à diplomacia da vacina, a decisão da Anvisa de negar autorização para o uso emergencial da Sputnik V teve reação na Rússia, onde a presença do Estado na indústria farmacêutica é mais acentuada, assim como a disposição do presidente Vladimir Putin para intervir na vida econômica em nome do que identifica como interesses estratégicos. O mesmo diplomata que comentou sobre as inconfidências de Paulo Guedes a respeito da China observa que, afora o aspecto técnico do exame da vacina russa pelos órgãos de saúde, o bom andamento de futuras aquisições da Sputnik poderia ser facilitado pela ação política do Itamaraty.
Na condução das tratativas com Moscou, fica o “conselho” atribuído ao gênio Garrincha na preparação da Seleção Brasileira para a partida contra a União Soviética, na Copa de 1958. Na diplomacia, como no futebol, é recomendável “combinar com os russos”.
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