Entrevista

Eurodeputado defende investigação contra Bolsonaro

Em entrevista ao Correio, o espanhol Miguel Urbán reafirmou as críticas feitas a gestão Bolsonaro à pandemia da covid-19

Na quinta-feira, o Parlamento Europeu, em Bruxelas (Bélgica) debatia a situação da pandemia na América Latina quando o foco das atenções passou a ser o Brasil. Vários eurodeputados fizeram críticas contundentes à gestão da pandemia por parte do presidente Jair Bolsonaro. Um deles, o espanhol Miguel Urbán, falou com o Correio Braziliense. Leia a entrevista:

Em termos gerais, como o senhor analisa a conduta do Bolsonaro no enfrentamento à
pandemia da covid-19?
A gestão de Bolsonaro da pandemia não pode ser analisada sem explicar, primeiro, que desde que assumiu o governo, sua política tem sido marcada por um ataque direto às maiorias sociais do Brasil, ao público, ao meio ambiente e a quem tem se colocado à frente de seu projeto político ultra-neoliberal. Todos os passos que ele deu no contexto da crise da covid-19 também apontam nessa direção. Recomendar tratamentos (com hidroxicloroquina) sem
qualquer embasamento científico, mesmo financiando sua produção, promover multidões e encontros em massa, boicotar o campanha de vacinação no início da pandemia, ou prejudicar o trabalho e a coordenação que tornou o sistema de saúde pública em todos os aspectos. Em vez do vírus, Bolsonaro declarou guerra à medicina, à ciência e à vida. Estas são medidas que o governo Bolsonaro tem usado para semear o caos e continuar a aprovar medidas que colocam o lucro privado acima de qualquer consideração do que é público: como a tentativa de aprovar legislação que permitiria o acúmulo de terras e a mineração; ou como o recente projeto de lei que permite que empresas privadas negociem diretamente com as farmacêuticas a compra de
vacinas, o que de fato fagocita a tão necessária imunidade coletiva. Soma-se a isso os 19 milhões de brasileiros que, hoje, passam fome; e os 116 milhões que sofrem de insegurança alimentar. Uma catástrofe humanitária e social. A pandemia e sua gestão desastrosa exacerbaram as lacunas e problemas sociais que já existiam no Brasil e no mundo.


Por que a questão da pandemia no Brasil foi levantada pelo Parlamento Europeu?
Lidar com a pandemia da covid-19 é um desafio global, mas o surto em alguns países foi exacerbado porque alguns governos minimizaram a importância da gravidade da pandemia, promoveram tratamentos sem base científica. Eles atrasaram deliberadamente as vacinações e evitaram medidas de contenção.

Um desses países foi justamente o governo do Brasil. Mas, também, Bolsonaro tirou proveito da pandemia para, entre outras coisas, encobrir a grilagem de terras em florestas protegidas e reservas indígenas, e enfraquecer leis de proteção ambiental. E aqui deve ser lembrado que, de acordo com a OMS, o a perda de biodiversidade é a causa de 70% dos surtos epidêmicos no mundo.


A covid-19, como já mencionei, aprofundou as desigualdades estruturais e persistente no Brasil e tem afetado principalmente a vida de grupos em situação de vulnerabilidade, como a população racializada empobrecida, comunidades tradicionais, povos indígenas, mulheres, comunidade LGBTQIA+ e moradores de favelas e da periferia. A taxa de fome no Brasil atingiu seu ponto mais alto desde 2004 e os programas de assistência financeira para baixa renda impulsionados pelo governo têm sido insuficientes e falhos. Mas, neste debate, a esquerda europeia também quis questionar o papel da União Europeia, porque, também, não devemos esquecer que os países do Hemisfério Norte falam de boca cheia sobre solidariedade, mas depois votam contra a liberalização de patentes, ficando do lado dos interesses das grandes farmacêuticas. Ou recusam-se a aprovar um imposto sobre a riqueza da covid para financiar a luta contra a pandemia e a desigualdade, ou mesmo a exigir o cancelamento da dívida externa para investir na reconstrução dos sistemas de saúde.


Como o senhor vê a ameaça representada por Bolsonaro a outros países por causa da
pandemia?
Bolsonaro faz parte daquela minoria perigosa que coloca os benefícios de alguns acima da vida e dos direitos das maiorias sociais e do planeta. Existem vários estudos que indicam que Bolsonaro expandiu a pandemia de modo deliberado. Na verdade, existem várias investigações recentes que mostram isso, em que até 3.000 regulamentos federais foram analisados. Essas análises mostraram que todas essas iniciativas políticas perseguiram claramente o objetivo de que o maior número possível de pessoas fossem infectadas, no menor tempo possível, para, assim, “salvar a economia”. Entretanto, está é uma falsa dicotomia de economia ou vida. Falsa porque sem vida não há nada. Não são erros, são atos criminosos. O resultado desse projeto necropolítico é que o Brasil se tornou o epicentro da pandemia, com 12% das mortes e 10% das infecções por coronavírus em todo o mundo; é o primeiro país da América Latina com o maior número de fatalidades causadas pelo vírus. Além disso, as mortes diárias aumentam rapidamente, com as UTIs lotadas. A situação, infelizmente, piora rapidamente. Por outro lado, a rápida disseminação da variante do coronavírus P1, detectada em Manaus, em novembro de 2020, está impulsionando a segunda onda no Brasil e tem sido um importante causa de preocupação na América Latina e no mundo. E isso, com um ritmo de vacinação que está 10 vezes abaixo do que o Brasil seria capaz, se não fosse o flagelo da administração Bolsonaro.

Existe alguma forma de pressão da comunidade internacional para que Bolsonaro mude a
política em relação à pandemia?
Claro. Até agora, a União Europeia tem ignorado as políticas de morte impostas por Bolsonaro porque isso é funcional para a elite política e econômica da Europa. Para dar um exemplo: enquanto no Brasil é anunciado que o Senado lançaria uma Comissão de inquérito contra Bolsonaro e contra seu ministro da saúde, o presidente do Parlamento Europeu se dedica a enviar cartas (em nome de todo o Parlamento) para o presidente do Senado brasileiro (Rodrigo Pacheco), vendendo os supostos benefícios do acordo do Mercosul. E afirmando que a ratificação do acordo é uma das prioridades da cooperação EU-Brasil. Implicando também que a ratificação do acordo uma condição necessária para a cooperação sobre a covid-19. Ou seja, o presidente do Parlamento Europeu não ignora apenas todas as críticas e divisões que existem entre os Estados-Membros e até no próprio Parlamento a respeito deste acordo, mas também ignora todas as críticas contra Bolsonaro e seu governo, acusações tão graves quanto de supostamente cometer crimes contra Humanidade. A Europa não pode mais jogar o jogo dos governos de extrema-direita como o de Bolsonaro, que coloca seus interesses antes dos de seu povo e do planeta. A Europa tem que apoiar a investigação da administração de Bolsonaro por esses crimes; não ratificar o acordo do Mercosul; canalizar ajuda direta para a sociedade civil e as comunidades indígenas, sem passar pelo governo negacionista de Bolsonaro; e cancelar todas as dívidas do país para que o Brasil possa produzir vacinas e fazer avançar a campanha de vacinação.