Itamaraty em foco no Senado
Enquanto a CPI da covid não marca data para o depoimento do ex-chanceler Ernesto Araújo, possivelmente na semana que entra, o Senado teve uma espécie de aperitivo na semana que se encerra. Em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores, o novo titular da pasta, Carlos França, foi inquirido com insistência sobre as relações com a China e o impacto das repetidas declarações hostis do presidente Jair Bolsonaro sobre o programa de vacinação contra o coronavírus — já que o gigante asiático é um dos principais fornecedores de imunizantes e insumos.
Não por acaso, aliás, a menção mais recente do presidente à China como “criadora” do vírus, com direito a uma sugestão vaga sobre “guerra biológica”, deflagrou mais uma rodada de diplomacia feita ao largo ou para além do Ministério das Relações Exteriores. Como em outras ocasiões, governadores trataram de estabelecer pontes com o embaixador chinês. E o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, faz movimento semelhante em articulação com o chanceler.
Como tem sido recorrente desde o início da pandemia, há mais de um ano, o presidente e seu entorno mais próximo — começando pelo “filho 03”, o deputado Eduardo Bolsonaro — se colocam como obstáculos ao trabalho da diplomacia profissional. O elemento novo está no Congresso, em especial no Senado, onde a presidente da Comissão de Relações Exteriores, Kátia Abreu (PP-TO), eleita para o posto em janeiro, não tardou em colocar em foco a ação do governo na frente externa.
Para bom entendedor
A participação do ministro na audiência da última quinta-feira se soma a outros episódios e reforça a impressão de que a escolha do embaixador Carlos França para suceder Ernesto Araújo atendeu ao interesse do Planalto em ter no Itamaraty um titular sob medida para garantir a ação pragmática, sem expor fragilidades ou incoerências da política externa determinada por Bolsonaro — nem, muito menos, seus gols contra.
Sempre que inquirido sobre danos causados na relação com o principal parceiro comercial do país, o chanceler empenhou-se em preservar o presidente. França, diferentemente do antecessor, não se deu ao trabalho defender as teses “antiglobalistas”, nem reproduziu o discurso “nacionalista” no delicado tema ambiental. Porém, tampouco sinalizou com alguma correção de rumos ou acenou com um movimento de adaptação ao realinhamento iniciado por Joe Biden nos EUA , Na primeira metade do mandato, com Donald Trump na Casa Branca, Bolsonaro teve Washington como farol para posicionar o Brasil no cenário internacional.
Próxima atração
No campo minado da CPI, as atenções dos emissários externos e observadores se voltam agora para o depoimento de Ernesto Araújo. Na medida em que possa servir como uma prévia, suas últimas aparições no Congresso como chanceler tiveram como tom a marcação cerrada de deputados e senadores da oposição — e mesmo de setores que, no mais das vezes, votam com o governo.
Em especial, espera-se que Araújo seja metralhado com perguntas sobre as repetidas situações nas quais em nada contribuiu para dissolver mal-estares com Pequim. Ao contrário, o escolhido por Bolsonaro para o Itamaraty no início do mandato, embora diplomata de carreira, encarnou um papel mais comum para políticos que ocupam cargo análogo: o de, como chanceler, colocar lenha na fogueira, ao invés de interceder com panos quentes.
Dias antes de apresentar ao presidente o pedido de demissão, Araújo passou pelo constrangimento de ouvir, no Senado, meia dúzia de “sugestões” para que deixasse o cargo. Entre elas, um sonoro “peça para sair” pronunciado pelo experiente Tasso Jereissati (PSDB-CE), um dos parlamentares que já frequentaram listas de possíveis ocupantes do Itamaraty, pela familiriadade que construiu com o tema.
Chapéu alheio
Na já chamada “geopolítica da vacina”, vem justamente da Casa Branca o mais novo enigma que desafia o Planalto e o Itamaraty. Para a surpresa de muitos, e contrariando a postura tradicional dos EUA, Biden anunciou o apoio à suspensão temporária de patentes sobre as vacinas contra a covid. Ainda na gestão do ex-chanceler, o Brasil se opôs à proposta desse teor feita pela Índia e pela África do Sul. Ambos os países são parceiros do Brasil no Brics, e o primeiro forma com a China a dupla de grandes produtores e exportadores de fármacos e insumos cruciais para a indústria farmacêutica.
Pela perspectiva das relações em escala global, o lance do presidente americano está sendo visto como exemplo de manobra com excelente relação de custo-benefício. Economicamente, a indústria dos EUA tem pouco a perder com a medida, ao contrário dos concorrentes chineses, indianos e mesmo europeus. Politicamente, Biden tem muito a ganhar, graças ao peso específico dos EUA para favorecer uma decisão dessa natureza. De quebra, rouba à China o protagonismo no combate à pandemia.
Quem te viu...
Para quem acompanha a diplomacia brasileira, é inevitável lembrar o papel desempenhado pelo país, no início dos anos 2000, para a quebra de patentes sobre medicamentos destinados a enfrentar a aids, com o tucano José Serra no Ministério da Saúde. Na audiência a que compareceu no Senado, o novo chanceler reafirmou as reservas do governo Bolsonaro contra a repetição da iniciativa no combate ao coronavírus.
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