Saúde mental

Com crise e pandemia, saúde mental decai na Venezuela

A pandemia se junta a uma recessão de oito anos em que a pobreza ganhou terreno, os salários foram diluídos como resultado da inflação galopante, a moeda local despencou e o dólar prevaleceu

Agência France-Presse
postado em 10/05/2021 14:43 / atualizado em 10/05/2021 14:44
 (crédito: JOSEP LAGO / AFP)
(crédito: JOSEP LAGO / AFP)

Durante uma crise em pleno confinamento, María Gabriela Tablera tentou cometer suicídio em sua casa na Venezuela, um país em colapso onde a saúde mental despencou com a segunda onda da covid-19.

“Eu tentei tirar minha vida (...) porque eu realmente não queria viver”, lembra Tablera, uma estudante de cinema de 25 anos, que sofreu vários ataques de pânico desde a tentativa fracassada em agosto de 2020.

“Não poder sair, não poder seguir a rotina diária, deixa a cabeça deprimida e apodrecida”, continua. A máscara, diz ela, "a deixa ansiosa".

A pandemia se junta a uma recessão de oito anos em que a pobreza ganhou terreno, os salários foram diluídos como resultado da inflação galopante, a moeda local despencou e o dólar prevaleceu.

A crise alimenta os desequilíbrios mentais que surgem com a covid-19, criando um "terreno fértil" que, para muitos, é "a gota d'água", explica Juan Carlos Canga, presidente da Federação de Psicólogos da Venezuela (FPV).

A Venezuela, com uma população de 30 milhões, registra pouco mais de 200.000 infecções e 2.200 mortes, embora organizações como a Human Rights Watch considerem que os balanços oficiais escondem um subregistro.

Como no resto do mundo, “aumentaram os níveis de ansiedade, angústia, tristeza e depressão”, destaca Canga.

Em agosto, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) alertou sobre uma "crise de saúde mental" sem precedentes no continente americano em decorrência do isolamento devido à pandemia, e em novembro alertou que seus efeitos provavelmente "persistirão" assim que o vírus seja controlado.

Três suicídios diários

O governo venezuelano mantém uma quarentena que intercala uma semana "radical", quando só podem abrir lojas essenciais, com uma "flexível", que permite que as pessoas saiam sem maiores restrições.

No entanto, dada a virulência da segunda onda, decretou um confinamento de duas semanas em março.

Então, Paola Hernández, operadora do serviço telefônico de atendimento psicológico gratuito da FPV, viu um pico: “o número de ligações que tivemos em janeiro e fevereiro dobrou”.

“Metade dos atendimentos (...) são para sintomas de ansiedade, ataques de pânico, problemas de insônia”, explica a psicóloga.

O resto alterna casos de depressão e problemas familiares. Há também ideias suicidas, que Hernández diz, na maioria das vezes, "chegam a um ponto" na conversa "onde a pessoa reconhece que existem outras alternativas".

O Observatório da Violência da Venezuela (OVV), uma das principais ONGs do país devido à escassez de dados oficiais, relatou três suicídios por dia em 2020, 22 por semana.

De acordo com seu relatório anual, 78,2% do total ocorreram desde que a quarentena foi decretada em março do ano passado.

Tabu 

Na Venezuela, um país fervorosamente católico e conservador, falar sobre suicídios é tabu.

Apesar disso, as redes sociais têm servido para divulgar ligações pedindo ajuda profissional em casos de depressão e outros transtornos.

Jonathan Alvarado decidiu se abrir quando viu o caso de um jovem que se suicidou em Maracaibo, a segunda cidade mais importante do país, um dos muitos relatos não oficiais que aparecem no Twitter.

“Disse que me sentia identificado porque tive duas tentativas de suicídio (...), talvez ele também se sentisse como eu”, conta o guia turístico de 27 anos.

A pandemia, ele continua, se soma aos seus problemas pessoais. Ele está desempregado há meses e sobrevive com suas economias. "Se ver trancado, vendo que não está fazendo nada, essas questões ganham um pouco mais de força".

Aos poucos, o tabu é quebrado. “A intensidade da crise é de tal forma que está afetando esse paradigma”, diz Canga.

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