O anúncio nesta segunda-feira (17/5) de que a Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça americana, aceitou analisar uma lei do Estado do Mississippi que restringe o acesso ao aborto foi recebido como um sinal de que o direito de interromper a gravidez pode estar ameaçado no país.
A lei em questão proíbe o aborto a partir de 15 semanas de gestação e será o principal caso sobre o tema diante do tribunal desde que a juíza conservadora Amy Coney Barrett, nomeada no final do mandato presidente Donald Trump, assumiu o cargo.
Com a entrada de Barrett, em outubro do ano passado, a Suprema Corte passou a ter uma supermaioria de seis juízes da chamada ala conservadora (nomeados por presidentes republicanos) e apenas três juízes da ala liberal (nomeados por presidentes democratas).
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Opositores do aborto esperam que, com essa nova composição, o tribunal emita uma decisão favorável à lei no Mississippi, o que poderia abrir o caminho para limitar o direito ao aborto no resto do país.
Desde a decisão da Suprema Corte no caso Roe versus Wade, em 1973, o aborto é considerado um direito fundamental nos Estados Unidos. Esse direito é garantido em todo o país até o ponto de viabilidade fetal (a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero), que varia, mas ocorre geralmente em torno de 24 semanas de gestação.
Passado o ponto de viabilidade fetal, os Estados são livres para regular o procedimento, exceto quando for necessário para preservar a vida ou a saúde da gestante. Mas, antes de a gestação chegar a esse ponto, o precedente da Suprema Corte estabelece que os Estados não podem impedir uma mulher de exercer seu direito ao aborto por nenhum motivo.
Ao longo de décadas, ao analisar outros casos sobre o tema, a Suprema Corte sempre reafirmou o direito ao aborto até a viabilidade fetal, derrubando leis que tentavam impedir o procedimento antes desse ponto. Mas, agora que seis dos juízes são da ala conservadora, tanto opositores quanto defensores do aborto acreditam que a decisão poderá ser diferente.
"Esse caso tem uma importância enorme", diz à BBC News Brasil a professora de Direito Mary Ziegler, da Florida State University, autora de diversos livros sobre o tema, entre eles Abortion and the Law in America: A Legal History of the Abortion Debate (Aborto e a Lei na América: Uma História Legal do Debate sobre Aborto, em tradução livre).
"A única maneira de o tribunal manter a lei do Mississippi é ou derrubar Roe versus Wade inteiramente ou se livrar de uma parte fundamental de Roe versus Wade, que é a ideia de que não se pode proibir o aborto antes da viabilidade fetal", salienta.
Os argumentos serão ouvidos pela Suprema Corte a partir de outubro, e uma decisão final só é esperada em 2022. Mas o simples fato de o tribunal ter aceitado esse caso é considerado importante já que, em anos anteriores, a Suprema Corte vinha evitando revisar decisões de tribunais inferiores sobre leis claramente em conflito com a questão da viabilidade fetal.
"Não há motivo para o tribunal aceitar analisar esse caso se não for para fazer algo explosivo em relação ao aborto", opina Ziegler.
Precedente
A lei do Mississippi, Estado de maioria conservadora onde o executivo e o legislativo são comandados por políticos do Partido Republicano, proíbe abortos a partir de 15 semanas de gestação, com exceção apenas para algumas emergências médicas e casos de "anormalidade fetal severa".
Aprovada em 2018, a lei nunca entrou em vigor, porque foi contestada na Justiça pela única clínica de aborto em funcionamento no Estado e derrubada por um juiz do Tribunal Distrital Federal em Jackson, capital do Mississippi.
"O Estado escolheu aprovar uma lei que sabia ser inconstitucional para endossar uma campanha de décadas, alimentada por grupos nacionais de interesse, para pedir que a Suprema Corte reverta Roe versus Wade", escreveu o juiz Carlton Reeves ao anunciar sua decisão, em 2018.
O caso foi então para um tribunal de apelações, que em 2019 confirmou a decisão de Reeves. "Desde Roe versus Wade, casos sobre aborto na Suprema Corte estabeleceram (e afirmaram, e reafirmaram) o direito de uma mulher de optar pelo aborto antes da viabilidade fetal", disse o tribunal de apelações.
Diante dessa decisão, o Estado pediu que a Suprema Corte revisasse o caso. Ao aceitar, o tribunal concordou em considerar a questão sobre "se todas as proibições de abortos eletivos antes da viabilidade fetal são inconstitucionais". O anúncio foi comemorado por opositores do aborto.
"Esta é uma oportunidade histórica para a Suprema Corte reconhecer o direito dos Estados de proteger crianças não nascidas dos horrores de abortos dolorosos em gestação avançada", declara, em nota, a presidente do grupo anti-aborto Susan B. Anthony List, Marjorie Dannenfelser.
"Ao redor da nação, legisladores estaduais agindo em nome da vontade da população apresentaram 536 projetos de lei pró-vida que buscam humanizar nossas leis e desafiar o status quo radical imposto por Roe (versus Wade)", diz Dannenfelser.
Ao mesmo tempo, defensores do direito ao aborto reagiram ao anúncio da Suprema Corte com apreensão.
"Sinais de alarme estão soando sobre a ameaça aos direitos reprodutivos", afirma, em nota, a presidente e CEO do Center for Reproductive Rights (Centro de Direitos Reprodutivos), Nancy Northup.
"A Suprema Corte acaba de aceitar revisar uma proibição ao aborto que inquestionavelmente viola quase 50 anos de precedente e é um teste para derrubar Roe versus Wade", diz Northup.
Histórico
O movimento anti-aborto nos Estados Unidos vem há décadas tentando derrubar Roe versus Wade. Mas, diante da dificuldade de invalidar a decisão completamente, muitos Estados de maioria conservadora, especialmente aqueles governados por políticos republicanos, passaram a buscar outras formas limitar o acesso ao aborto.
Ao regular as circunstâncias em que o procedimento é permitido, vários Estados vêm aprovando leis cada vez mais restritivas, mas que não contrariam frontalmente a decisão de 1973.
A maioria dos Estados proíbe o aborto a partir de determinado período da gestação. Também são comuns leis que obrigam a gestante a receber aconselhamento antes do procedimento, ter consentimento dos pais, em caso de menores de idade, ou respeitar determinado período de espera entre a primeira consulta e a realização do aborto, o que exige duas idas à clínica, muitas vezes localizada a quilômetros de distância.
Restrições como essas e outras acabam tornando o aborto inacessível para muitas mulheres, dependendo das condições financeiras ou do Estado em que vivem. Assim como o Mississippi, há pelo menos cinco outros Estados onde só existe uma clínica de aborto em funcionamento.
Mas essas restrições, apesar de limitarem o acesso, não contrariam o precedente da Suprema Corte, já que não proíbem o aborto antes da viabilidade fetal. Nos últimos anos, porém, um grande número de Estados vem aprovando leis que desafiam a decisão em Roe versus Wade.
O Mississippi é um entre vários Estados que proíbem o aborto a partir de 20 semanas de gestação, quando, segundo os autores dessas propostas, o feto pode sentir dor.
O Estado também é um dos que aprovaram leis proibindo o procedimento a partir do momento em que é possível detectar batimentos cardíacos no embrião, o que ocorre em torno da sexta semana de gestação, quando muitas mulheres ainda nem sabem que estão grávidas.
Essas leis até agora foram impedidas de entrar em vigor na Justiça, e tanto opositores quanto defensores do aborto concordam que seu objetivo é fazer com que sejam contestadas, na esperança de que uma delas chegue até a Suprema Corte.
O objetivo seria que uma maioria conservadora no tribunal acabasse reconsiderando o precedente. Agora, essa estratégia poderá ser testada.
"Este é o momento pelo qual políticos anti-aborto vinham esperando desde que Roe versus Wade foi decidido", afirma a diretora do Projeto de Liberdade Reprodutiva da organização de direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), Jennifer Dalven.
Futuro
Os nove juízes da Suprema Corte americana têm cargo vitalício, e três dos seis integrantes da ala conservadora foram nomeados durante o mandato de Donald Trump, que prometeu colocar nos tribunais do país juízes contrários ao aborto: além de Barrett, ele também nomeou Neil Gorsuch, em 2017, e Brett Kavanaugh, em 2018.
Como Gorsuch e Kavanaugh substituíram os também conservadores Antonin Scalia (morto em 2016) e Anthony Kennedy (que se aposentou), sua entrada no tribunal não alterou o equilíbrio entre conservadores e liberais.
Mas Barrett, uma católica fervorosa e mãe de sete filhos que, antes de ser nomeada, chegou a descrever o aborto como "sempre imoral", ocupa a vaga deixada por Ruth Bader Ginsburg, ícone liberal e feminista morta no ano passado e que era voz crucial na defesa pelos direitos reprodutivos.
Antes da chegada de Barrett, alguns dos cinco os juízes conservadores, como Kennedy, se aliaram aos liberais em determinadas decisões sobre o aborto. No ano passado, o presidente do tribunal, John Roberts, também da ala conservadora, votou ao lado dos liberais em um caso que restringia o acesso ao aborto no Estado da Louisiana.
Mas agora, com a supermaioria, mesmo que um dos conservadores decida votar com a ala liberal, é pouco provável que isso mude o resultado final.
Se a Suprema Corte decidisse derrubar Roe versus Wade, o aborto passaria a ser regulado somente pelos Estados.
"As consequências seriam devastadoras", afirma Northup. "Mais de 20 Estados proibiriam (o aborto) completamente."
Northup ressalta que 11 Estados, incluindo o Mississippi, têm prontas leis que determinam a proibição imediata do aborto caso Roe versus Wade seja derrubada. Mas analistas lembram que vários Estados de maioria liberal e governados por políticos democratas têm leis que garantem o acesso ao aborto nesse caso.
Quase 50 anos depois da decisão em Roe versus Wade, a opinião dos americanos sobre o aborto não mudou muito, e o país continua dividido. Segundo pesquisa Gallup do ano passado, 50% dizem que deve ser legal, mas com algumas restrições.
A decisão da Suprema Corte deverá ser anunciada às vésperas das eleições de meio mandato do ano que vem e poderá ter impacto na disputa pelo controle da Câmara e do Senado, onde o Partido Democrata, do presidente Joe Biden, tem maioria apertada.
Na segunda-feira (17/5), ao ser questionada por repórteres, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, disse que o governo está "comprometido a codificar" Roe (versus Wade), mas não deu detalhes sobre que medidas o governo federal adotaria para proteger o direito ao aborto.
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