O reconhecimento veio um dia depois de o presidente da França, Emmanuel Macron, admitir “as responsabilidades” do país no genocídio de 1994 em Ruanda, quando o regime extremista da etnia hutu matou mais de 800 mil pessoas, a maioria membros da minoria tutsi. Ontem, foi a vez de a Alemanha começar a acertar as contas com o passado sangrento. Pela primeira vez, Berlim admitiu que cometeu um “genocídio” na Namíbia contra as populações das etnias herero e nama, entre 1904 e 1908, durante o período colonial. “Do ponto de vista atual, hoje qualificaremos estes acontecimentos como o que são: um genocídio”, afirmou o ministro alemão das Relações Exteriores, Heiko Maas, por meio de um comunicado. Alfredo Hengari, porta-voz do presidente da Namíbia, Hage Geingob, reagiu e disse que a “a aceitação por parte da Alemanha de que um genocídio foi cometido é um passo na direção correta”.
Mais de 100 mil hereros, 20 mil namas e 30 mil damara foram executados pelas forças alemãs. Para sufocar uma rebelião dos hereros, que tiveram terras e gados roubados, o general alemão ordenou o extermínio da etnia. Um ano depois, o mesmo ocorreu com os namas, que também se rebelaram. Entre as técnicas empregadas pela Alemanha, estão massacres em larga escala, exílio no deserto e campos de concentração no sudoeste da África, atual Namíbia.
Presidente da Associação do Genocídio Namibiano, em Swakopmund — a segunda maior cidade do país —, Laidlaw Peringanda disse ao Correio que os descendentes das vítimas não se mostraram satisfeitos com a indenização oferecida pela Alemanha aos povos Herero e Nama afetados pela matança. “Berlim tem que devolver nossa terra ancestral da minoria alemã branca, a qual ainda detém 60% das terras comerciais na Namíbia, enquanto a maioria dos negros namibianos não possuem terras e vivem em condições de extrema pobreza nos assentamentos informais”, comentou o ativista.
Bisneta de uma sobrevivente, Nokokure Veii vive em Windhoek, capital da Namíbia. “Minha bisavó jamais falou sobre o genocídio. Nunca soube nada por meio dela. Somente em 1982, ano de seu falecimento, eu soube que ela tinha sobrevivido à matança. Eu descendo de uma mulher traumatizada pelo que viveu durante o genocídio”, contou ao Correio, por telefone. A ativista comunitária relatou que muitos sobreviventes da etnia herero fugiram para Botswana e África do Sul. “Os descendentes ainda estão lá. Os alemães roubaram nossas terras, nossas propriedades e nosso povo. Houve muitos estupros, mortes e prisões. Muitas brutalidades desumanas ocorreram naqueles anos. Para que houvesse responsabilização pelos crimes, era preciso o reconhecimento da existência do genocídio. Depois, são necessários um pedido formal de desculpas e o pagamento de uma compensação”, acrescentou.
Negociação
De acordo com Nokokure, o acordo que será assinado não contemplou uma negociação direta com descendentes das vítimas do genocídio e foi costurado apenas pelos governos da Namíbia e da Alemanha. “O que soubemos é que os alemães ofereceram 1,1 bilhão de euros (cerca de R$ 7 bilhões) em projetos de desenvolvimento que serão pagos pelos próximos 30 anos”, desabafou. “Eu não concordaria com isso, porque nós, descendentes, não fomos envolvidos nesse acordo. Não temos ideia dos detalhes desses pactos.
Escutamos que a Alemanha reconheceu as brutalidades, as atrocidades e as violações dos direitos humanos que ocorreram como um genocídio. Também nos foi informado que o presidente do Bundestag (Parlamento da Alemanha) virá à Namíbia para se desculpar. O que não nos disseram é se pagarão alguma reparação.”
Nokokure defende que todo o processo de negociação comece do zero e que todas as partes sejam envolvidas. “Nós deveríamos saber o que está sendo negociado, deveríamos saber que nossas demandas serão levadas em consideração e que as indenizações serão pagas”, disse ela. Rumores em Windhoek sugerem que, caso Berlim desembolse as reparações, outras nações que promoveram violações na África se sentiriam ameaçadas. “Isso não é da nossa conta. Não podemos concordar com esse acordo, pois nem mesmo sabemos se isso é um acordo.”
» Eu acho...
“Estou feliz com o fato de o governo da Alemanha ter reconhecido que o que os soldados coloniais alemães fizeram contra nossos ancestrais, entre 1904 e 1908, foi um genocídio. O que houve em meu país é chamado de ‘genocídio esquecido’, porque a Alemanha escondeu esse tema do mundo. Muitos dos cemitérios onde nossos ancestrais mortos naquele período foram sepultados acabaram destruídos deliberadamente.”
Laidlaw Peringanda, presidente da Associação do Geocídio Namibiano, em Swakopmund
“O que a Alemanha aceitou foi assinar um acordo de reconciliação com todos os descendentes de vítimas do genocídio namibiano. Tal acordo oferecerá projetos de desenvolvimento como um pagamento pelo que os alemães nos fizeram. Em 2006, o presidente do partido da oposição Organização Democrática da Unidade Nacional (Nudo) apresentou uma moção no Parlamento declarando que o governo da Alemanha deveria sentar-se à mesa com todos os descendentes de vítimas do genocídio e que o Legislativo deveria ser o mediador. As negociações começaram, mas o governo da Namíbia decidiu dialogar diretamente com Berlim. As pessoas envolvidas na questão foram excluídas desse processo.”
Nokokure Veii, ativista comunitária em Windhoek, capital da Namíbia, e bisneta de uma sobrevivente do genocídio
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