Algumas guerras são de Estado
Para quem esperava de Joe Biden uma abordagem distinta da adotada por Donald Trump na disputa geopolítica com a China, o último movimento da Casa Branca no combate à pandemia encarregou-se de lembrar uma máxima impregnada na história dos EUA: democratas e republicanos têm coincidência de quase 100% em questões, principalmente externas, consideradas de Estado. Foi assim ao longo da Guerra Fria, como tem sido assim nas relações com a América Latina — que John Kerry, hoje enviado de Biden para assuntos ambientais, mencionou como “o quintal” quando era o secretário de Estado no governo Obama.
Com a decisão de dar 90 dias aos órgãos de inteligência para que investiguem a teoria segundo a qual o vírus da covid-19 teria “escapado” de um laboratório em Wuhan, o presidente americano subiu um tom nas controvérsias com Pequim. O enfrentamento da crise sanitária se soma às pendências no comércio internacional — ingrediente indispensável para recuperação econômica pós-pandemia — e à desconfiança mútua crescente no terreno militar e de segurança.
O elemento que diferencia Biden do antecessor, na política externa, é a opção preferencial pelo multilateralismo. Mas, como os governos que o precederam — e, muito provavelmente, os que o sucederão —, o veterano senador costura alianças para reforçar a hegemonia dos EUA, não para compartilhar liderança.
À moda antiga
Está marcado para meados de junho o primeiro encontro do presidente americano com o colega russo, Vladimir Putin. Por convicção ou por conveniência, o laço entre os dois será estabelecido em “campo neutro” — outra reminiscência das quatro décadas de rivalidade com a hoje extinta União Soviética, período no qual foram raras as visitas trocadas entre Washington e Moscou.
Foi durante a Guerra Fria que se cunhou a expressão “encontro de cúpula”: originalmente, ela se aplicava à reunião entre os líderes das duas superpotências militares. Embora EUA e URSS mantivessem relações diplomáticas, o engajamento em campos opostos nos chamados conflitos regionais — como a Guerra do Vietnã — e a corrida armamentista determinavam uma complexa coreografia para a aproximação, mais ainda quando havia troca de guarda em algum dos dois lados.
É sintomático, portanto, que Biden vá ao encontro de Putin em Genebra, na Suíça, última escala de uma turnê pela Europa. Antes de trocar figurinhas com aquele que é visto como o “czar do século 21”, o titular da Casa Branca assistirá à reunião do G7, no Reino Unido, e acertará ponteiros, em Bruxelas, com os parceirois da Otan — a aliança militar criada no pós-Segunda Guerra justamente para confrontar a URSS.
Mudou a orientação?
A política da diplomacia brasileira para o Oriente Médio na gestão do chanceler Carlos França está sob observação depois que o país se absteve na votação em que o Conselho de Direitos Humanos da ONU decidiu investigar possíveis crimes de guerra no conflito travado nas últimas semanas entre Israel e o movimento islâmico palestino Hamas. A resolução foi aprovada por 24 votos contra nove, com 14 abstenções — entre elas, a do Brasil.
Desde a posse, o presidente Jair Bolsonaro fez do apoio a Israel uma das expressões do alinhamento diplomático com os EUA de Donald Trump. O premiê Benjamin Netanyahu, adversário explícito da “solução de dois Estados” — com o reconhecimento da Palestina —, foi o primeiro governante visitado por ele fora da vizinhança sul-americana. Sob a batuta do chanceler Ernesto Araújo, o Itamaraty chegou a ensaiar o reconhecimento formal de Jerusalém como capital de Israel, ao arrepio da quase totalidade da comunidade internacional, e a transferência da Embaixada brasileira, hoje estabelecida em Tel Aviv.
Os EUA, que acompanham o conselho na qualidade de observadores, não têm direito de voto, mas “lamentaram” a decisão. Embora com ênfase menor que a de Trump, Biden mantém a aliança incondicional com Israel, e orientou o secretário de Estado Antony Blinken a bloquear qualquer resolução sobre o conflito no Conselho de Segurança da ONU — onde Washington é uma das cinco potências com poder de veto.
Não é infalível
Foram diversas e até contraditórias entre si as reações, no Brasil, à brincadeira que o papa Francisco se permitiu sobre “muita cachaça e pouca oração”. Opiniões e julgamentos à parte, o episódio reafirma a importância das palavras — e do cuidado com elas — nas relações internacionais. Mal-entendidos podem evoluir para mal-estar, ou mesmo atrito, até quando têm origem nas declarações de uma personalidade com a popularidade do atual pontífice.
O Vaticano, aliás, é o Estado pioneiro na constituição de um corpo diplomático profissional. Em sua história milenar, a Igreja jogou papel preponderante na arbitragem de disputas, como exemplificam os acordos entre potências europeias para a partilha de possessões coloniais, na era das navegações.
Bonachão e boa-praça, o argentino Jorge Bergoglio tirou de letra a rivalidade atávica com os vizinhos e conquistou os brasileiros com rapidez fulminante. Ainda assim, o resultado prático da piada atesta que, na diplomacia, não vigora o dogma da infalibilidade papal.
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