Entrevista ROSALÍA ARTEAGA

Ela quer ser a primeira mulher à frente da ONU

Ex-presidente do Equador teve a candidatura ao Secretariado das Nações Unidas promovida pela sociedade civil. A jornalista e advogada de 64 anos falou ao Correio sobre os desafios do cargo, defendeu uma organização focada no ser humano e admitiu a necessidade de reforma

» RODRIGO CRAVEIRO
postado em 29/05/2021 20:54
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Rosalía Arteaga, 64 anos, tem um currículo de superlativos. Ex-vice-presidente do Equador, tornou-se a única mulher a assumir o comando do país, em 1997, após o impeachment de Abdalá Bucaram. Ainda que tenha ficado poucos dias no poder, fez história. Entre 2004 e 2007, ocupou o posto de secretária-geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), com sede em Brasília. Foi quando estabeleceu uma relação de amor com a capital. Ex-ministra da Educação, Cultura e Esportes do Equador, ela pretende disputar, neste ano, o cargo de secretária-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) com o português António Guterres, que busca a reeleição.

O nome de Rosalía foi apresentado pela Forward — organização não governamental sediada em Londres que tenta mudar o processo de escolha das Nações Unidas — e aprovado pela internet com 98,3% dos votos. É a primeira vez que a candidatura de uma mulher é promovida pela sociedade civil. Agora, ela espera que a ONU valide essa via de candidatura. Presidente da Fundación Fidal, voltada para a integração e o desenvolvimento da América Latina, ela faz parte da direção da Biblioteca de Alexandria (Egito) e do conselho editorial da Enciclopédia Britânica, além de integrar o Conselho de Mulheres Líderes na Política, a Academia Mundial de Artes e Ciências e a Real Academia Europeia de Doutores. Em entrevista ao Correio, Rosalía abordou os desafios do cargo.

 

Como a senhora vê o desafio ante a chance de se tornar a primeira mulher a comandar a ONU?
O desafio é enorme e implica uma enorme responsabilidade. Sabemos que, ao longo de seus 76 anos de vida, as Nações Unidas sempre tiveram secretários-gerais homens, jamais mulheres. Tocou-me o fato de ser a primeira mulher a ocupar vários espaços, aqui, no Equador. Fui a primeira mulher no Ministério da Educação, além de vice-presidenta e presidenta da República. Mas, também, a primeira mulher secretária-geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Um tempo do qual recordo com muito carinho, pois a entidade tem sede em Brasília. A ONU nasceu, logo depois da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo primordial de evitar outro conflito, que poderia ser absolutamente devastador, ante o avanço das armas nucleares. Sabemos que há uma série de guerras focalizadas. Mas, também, temos outros tipos de guerras, como as mudanças climáticas, a pandemia do coronavírus e outras pandemias que poderão surgir. A ONU se desenvolve com foco nas relações entre os países. É importante redimensionar isso e pensar também no ser humano. Isso poderia nos dar uma riqueza enorme e uma reestruturação dos compromissos da ONU.

Como o seu nome foi colocado para o Secretariado da ONU?
Meu nome saiu à luz quando jovens da ONG Forward, com sede em Londres, propuseran minha candidatura. Eles são membros de um movimento político global e pensaram em meu nome, localizaram-me por meio das redes sociais e pediram-me que fosse candidata a secretária-geral. Eu não havia pensado nisso. É claro, fiquei interessada pela proposta. Mais ainda quando me disseram que queriam que meu nome fosse submetido a um processo de validação. Eles organizaram uma plataforma para que as pessoas votassem se queriam ou não que eu fosse candidata. Para minha surpresa, participaram jovens votantes de 71 países, e os resultados foram extraordinários: 98,3% disseram estar de acordo com a candidatura. Isso me compromete enormemente.

Qual seria o simbolismo de uma mulher no comando da ONU?
A ONU tem uma série de regras não escritas. Por exemplo, a eleição pode ocorrer a qualquer momento entre maio e setembro. No máximo, até outubro. Isso não está escrito. Por outro lado, pelo fato de minha candidatura não ser oficial, não ser apresentada por um país, ela tem que provocar uma abertura das Nações Unidas. É o que buscamos. A Forward apresentou o meu nome à Assembleia Geral e ao Conselho de Segurança da ONU. Esperamos que haja essa abertura e que, em algum momento, possamos dizer que a sociedade civil coloca candidatos para o Secretariado. Por ora, somente existe a candidatura do secretário-geral, António Guterres, para a reeleição. Veremos o que ocorrerá nos próximos dias. Muitas pessoas, de diversos locais do planeta, enviam cartas de respaldo à minha candidatura. O simbolismo está no fato de que a organização mais importante do mundo poderia contar com uma mulher como secretária-geral e ter uma visão diferente. Os projetos e programas serão os mesmos. Sempre teremos que falar da paz, da luta contra as mudanças climáticas, do combate às assimetrias, da luta contra a pobreza e a fome. O enriquecimento pode ser dado por esse capacidade multitasking (multitarefas) da mulher de enxergar um problema por diferentes ângulos.

Rosalía por Rosalía. Quem é esta mulher?
Sou uma mulher que se interessa por muitas coisas. Sou de uma cidade relativamente pequena: Cuenca, no sul do Equador. Sou advogada e educadora. Sou jornalista e tenho um programa de TV há mais de 20 anos. Escrevo para jornais e faço um programa de rádio. Desde cedo, interesso-me pela política. Fui vice-ministra da Cultura; ministra de Educação, Cultura e Esportes; vice-presidenta e presidenta da República. Tive a sorte de passar três anos em Brasília, mas também visitei a região amazônica do Brasil e dos outros sete países que formam a Bacia Amazônica. Tenho lutado pelos direitos da mulher, pela educação e pela proteção à natureza. Também dirijo a Fundación Fidal, voltada para a integração e o desenvolvimento da América Latina. Ela trabalha em vários países, elevando a autoestima de professores com concursos de excelência. Sou membro da direção da Biblioteca de Alexandria (Egito), do conselho editorial da Enciclopédia Britânica e do Conselho de Mulheres Líderes na Política. Quando me propõem algo desafiador, procuro estar à altura das circunstâncias e enfrentar os desafios com conhecimento, paixão, alegria e otimismo.

De que modo a experiência em áreas diversas pode ajudá-la a dirigir a ONU?
Efetivamente, tenho experiência a partir da Organização do Tratado da Cooperação Amazônica, organismo multilateral pequeno, mas de grande relevância, pois abarca a Bacia Amazônia, que tem mais de 7 milhões de quilômetros quadrados e representa 40% do território da América do Sul. Sou parte de conselhos importantes, como a Academia Mundial de Artes e Ciências e a Real Academia Europeia de Doutores. Isso me dá a possibilidade de falar com pessoas de diferentes setores políticos, religiosos, raciais e étnicos. Confere-me uma bagagem de experiências enriquecedoras, que poderiam levar a ONU a ser mais eficiente, menos burocrática e focada nas pessoas. O tema dos migrantes pode ser trabalhado a partir da questão das mudanças climáticas, pois já se fala em refugiados climáticos. Também, no tema da educação, transversal a todos eles.

A senhora é favorável à reforma das Nações Unidas?
As Nações Unidas têm cumprido com alguns de seus objetivos, mas não com outros. No tema da pandemia, nós não temos visto uma liderança real. Creio que elas deveriam ter encabeçado uma proposta de vacinas universas gratuitas. Por outro lado, a ONU, com a grande quantidade de agências (como Unicef, Unesco, FAO e outras), tem a possibilidade de ser muito mais incidente no território para buscar solucionar grandes problemas. As agências têm que trabalhar de forma coordenada, e isso precisa ser debatido no âmbito da ONU, sem que se interfira em ações planejadas. É preciso pensar em quais os alinhamentos gerais que a ONU precisa seguir. Pode haver uma mudança muito importante no foco sobre o ser humano. Ele está com medo ante a pandemia e tem incertezas ante a situação econômica, além de enfrentar a qualidade ruim da saúde e da educação. Na maioria dos países, há muita gente que sente fome. Todos esses temas têm que ser tratados com uma visão global, mas também local. Às vezes tenho falado sobre o mundo do ponto de vista “glocal”, neologismo que combina as necessidades desse mundo global, as oportunidades com as tecnologias e o avanço da ciência, mas também o que os grupos pensam de suas identidades, de sua forma de ser, de sua cultura e de suas tradições, que precisam ser respeitadas. Glocal poderia ser uma palavra colocada mais em uso e que defina uma atuação muito mais efetiva das Nações Unidas.

Especialistas veem a ONU como multifacetada, o que consideram um obstáculo à eficiência. Como é possível mudar isso?
Há muita burocracia. Um movimento a partir da cúpula pode ser extremamente favorável. Às vezes, algumas organizações caem na zona de conforto. Elas estão fazendo algo, mas não o bastante. Essa é a situação no interior das Nações Unidas. Como desburocratizá-la e torná-la muito mais efetiva? É preciso trabalhar de maneira coordenada, levando-se em conta o local e o global. Colocar o foco sobre o ser humano como prioridade. Saber como enfrentar os desafios pelo caminho. Uma das coisas que podemos estar seguros neste mundo de incertezas é que virão grandes desafios, talvez grandes pandemias. A humanidade não pode ser tomada de maneira improvisada, como temos visto. Precisa haver maior harmonia com a natureza. Isso pode ser feito a partir do nível local. Desburocratizar as Nações Unidas tem que ser um dos planos importantes.

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Brasília, um lar e uma relação de carinho

 (crédito: Arquivo pessoal)
crédito: Arquivo pessoal

“Posso dizer que Brasília é uma cidade que amo. É o meu segundo lugar.” Assim Rosalía Arteaga definiu sua relação com a capital. “Tive a sorte de viver momentos muito felizes em Brasília. Foram pouco mais de três anos trabalhando muito intensamente, mas também desfrutando de espaços tão maravilhosos”, afirmou a equatoriana, que comandou a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), sediada em Brasília, entre 2004 e 2007. Ela destacou os passeios pela Esplanada dos Ministérios, as visitas à Torre de TV e as caminhadas no Pontão do Lago Sul. “Estive em Brasília pouco antes do início da pandemia, pela última vez. Foi experiência muito gratificante revisitar todos aqueles lugares. Também encanta-me a feira de antiguidades. Gostava de ir ao Teatro Nacional para desfrutar de algum espetáculo e ao Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha. Ali assisti a espetáculos, como um show do Roberto Carlos, no Dia das Mães”, relatou.

Além de desfrutar dos pontos turísticos de Brasília, Rosalía também recorda com carinho das viagens à Chapada dos Veadeiros, a Cristalina ou a Pirenópolis, no estado de Goiás. “Ali, eu gostava de respirar o ar das montanhas e apreciar suas tradições culturais”, comentou. “Há um lugar que me encanta: o Santuário Dom Bosco. Sobretudo ao entardecer, quando se vê o reflexo da luz solar nos vidros e cristais, nessa maravilha que é uma espécie de cubo.”

A ex-presidente do Equador não se esquece do céu de Brasília. “É fantástico! Não me cansava de olhar para cima. Gostava, ainda, de sentir como os ipês florescem, e o colorido das grandes avenidas, onde se podia admirar as cores fantásticas das flores dos ipês. Tenho lembranças maravilhosas e sempre penso em Brasília como minha casa”, disse Rosalía. A equatoriana confidencia que, sempre que cumpria missões em outras cidades, assim que o avião aterrissava no Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, ela se sentia como se retornasse para o lar. “Jamais me esquecerei disso.” (RC)

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