Paulo Delgado

Paulo Delgado - Com Henrique Delgado
postado em 05/06/2021 23:59

O KIWI E O BANCO CENTRAL

O kiwi é uma fruta originária da China, mas que ganhou o mundo a partir da Nova Zelândia. A outra coisa que se espalhou pelo mundo a partir da Nova Zelândia foi o regime de metas de inflação. Em 1989, o país oceânico introduziu uma política monetária que formalizava uma meta de inflação a ser mantida com independência pelo Banco Central. Nos anos seguintes, uma convergência normativa levou o mesmo regime a ser aplicado por cada vez mais países, a começar por Reino Unido, Suécia, Espanha, Canadá, até chegar à situação em que dois terços dos bancos centrais do mundo tenham adotado metas de inflação.

Muitas das decisões políticas têm as características dos kiwis. Elas são efeitos de difusão de normas — tipo exportação — entre países que optam por não dormirem diante da realidade. Num mundo em que distância e tempo estão cada vez mais reduzidos, por conta de avanços tecnológicos, o mercado para difusão de ideias também tende a se tornar mais dinâmico. Se a ideia é boa — ou se funciona porque está de acordo com o espírito daquele tempo —, saem ganhando aqueles que, com mais engenhosidade, a adaptam para resolver problemas concretos e impulsionar a vida socioeconômica do país. O vendedor pode até não gostar de kiwi, mas se kiwi vende, e não é eticamente intolerável, pode fazer sentido participar de sua difusão. A não ser que se tenha alternativa melhor. Ou que o contexto mude.

Passada uma fase de convergência normativa nos últimos 30 anos, em que imperava aquilo que o ex-economista-chefe do FMI Olivier Blanchard chama de “coincidência divina” — a ideia de que o foco na estabilização da inflação levaria à maximização sustentável do produto, seja medido em nível de emprego ou de PIB — hoje existe muito mais experimentação. É tempo de kiwis no mundo, e cada país têm os seus. Em um dos capítulos de Política Monetária e Bancos Centrais na Era do Covid, lançado dias atrás, o próprio Blanchard diz que ninguém mais bota fé na “coincidência divina” e que “não faz muito sentido” ter inflação como a única meta. Como estamos no Brasil, país de jabuticabas, é sempre bom dizer que isso não quer dizer para se despreocupar com a inflação. Mas é bom cuidar de outras coisas também.

O Centro de Pesquisa para Política Econômica (CEPR) de Londres faz um grande apanhado das experimentações feitas nos últimos anos ao redor do mundo. O movimento, que teve origem natural na crise de 2008, ganhou muita força em 2020. A junção da multiplicação de problemas a serem resolvidos com a capacidade técnica acumulada pelos principais bancos centrais do mundo faz com que se coloque cada vez mais demandas gerais e metas específicas sobre essas instituições.

O banco central britânico, agora, tem como mandato sustentabilidade ambiental e a condução da economia para a neutralidade de carbono. Uma exortação ecoada por Christine Lagarde à frente do Banco Central Europeu. No fim do ano passado, à beira do Parque Nacional de Grand Teton, em Wyoming, os manda-chuvas do FED — o banco central americano — chegaram ao consenso de que máximo emprego é a meta principal a ser perseguida. Muita gente achou que era conversa para boi dormir, mas, de fato, o desemprego americano que pulou de 3,5% em fevereiro de 2020 para 14,8% dois meses depois, já caiu de novo para a casa dos 5%.

Para além disso, congressistas americanos têm conseguido pressionar o FED a trabalhar para reduzir a desigualdade no país. Não basta ter empregos, é preciso ter bons trabalhos, saúde, educação, cultura, esporte e lazer. Para pessoas de boa vontade a crise abre uma oportunidade única para se criar uma economia melhor. Nos EUA e na Europa não está sendo aceito que a retomada beneficie apenas uma parte pequena da sociedade. Complementar a isso vem a crescente aceitação que o sucesso de um país não deve ser medido apenas por PIB e Bolsa de Valores. Como argumenta Esther Duflo, que ganhou o Nobel de Economia em 2019, “a vida é muito mais do que isso.” Em relação a isso, é sempre bom dizer também que isso não quer dizer para se despreocupar com crescimento. Apenas que tem que se cuidar disso e de outras coisas conjuntamente.

Como argumenta o economista político de Berkeley, Barry Eichengreen, no francês Le Monde, a demanda por um novo modelo de banco central que cresce no mundo é politicamente inevitável porque a mudança climática e o crescimento da desigualdade — que, no momento, é tanto cíclico quanto estrutural — são crises existenciais que vão entrar em todas as agendas de um jeito ou de outro. Ou seja, mesmo quem não gosta desse kiwi tem que saber que não só ele é economicamente tolerável, bem como vem a ser eticamente necessário.

Paulo Delgado, sociólogo

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