AMÉRICA LATINA

Peru tem desafio de construir governabilidade e acabar com polarização

Pedro Castillo, candidato da esquerda, passa à frente de Keiko Fujimori em segundo turno acirrado no Peru. Para analistas, caso eleito, professor de escola rural e ex-sindicalista terá difícil governabilidade e enfrentará Congresso fragmentado

Rodrigo Craveiro
postado em 08/06/2021 06:00
Com a bandeira do país, Castillo saúda eleitores em Lima, antes de viajar a Tacabamba, no estado de Cajamarca -  (crédito: Luka Gonzales/AFP)
Com a bandeira do país, Castillo saúda eleitores em Lima, antes de viajar a Tacabamba, no estado de Cajamarca - (crédito: Luka Gonzales/AFP)

A um passo de a esquerda ocupar a principal cadeira da Casa de Pizarro (palácio do governo), o Peru terá pela frente o desafio de construir a governabilidade, desmontar a polarização e reverter a crise política que se arrasta há três décadas — desde 2018, o país teve quatro chefes de Estado. Professor de uma escola rural, Pedro Castillo, 51 anos, se configurava como o favorito a se tornar o 11º presidente do país desde o fim do regime militar. Especialistas consultados pelo Correio admitem que, se eleito, o candidato do partido Perú Libre precisará de astúcia e de jogo de cintura para negociar com um Congresso fragmentado. “Serão necessárias convicções democráticas e habilidades de diálogo”, afirmou Milagros Campos Ramos, professora de direito constitucional da Pontificia Universidad Católica de Peru. Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000) e candidata da legenda Fuerza Popular (direita), chegou a liderar durante boa parte do dia.

Com 90% dos votos apurados, Castillo tirou uma diferença de quase 100 mil votos e ultrapassou Keiko. Com 95,96% das urnas apuradas, ele aparecia com 50,269% dos votos contra 49,731% para a adversária — uma diferença de 91,3 mil votos. As tendências apontavam vitória de Castillo, ante a contagem das cédulas eleitorais remanescentes da zona rural. Os votos de peruanos no exterior, porém, também faltavam ser apurados e, em tese, favoreceriam Keiko, mas seriam insuficientes para uma nova virada. Em visita a Tacabamba, no departamento de Cajamarca, 900km ao norte de Lima, o candidato pediu moderação aos simpatizantes. “Só o povo vai salvar o povo”, avisou. Keiko, por sua vez, preferiu o silêncio. O próximo presidente peruano tomará posse em 28 de julho.

“Qualquer um que ganhar precisará de armar coalizões políticas”, observou Milagros. A provável pequena margem de votos a favor de Castillo traduziria em pouca legitimidade de origem, explicou a professora. “Ele teria uma governabilidade complicada, pois o Congresso ficou muito fragmentado e polarizado, com dez agrupamentos políticos. O Perú Libre tem apenas 28% dos assentos”, lembrou.

De acordo com a estudiosa, a negociação política será complicada. Isso porque os grupos que chegaram ao Congresso carecem de unidade, de plano ideológico comum e de uma militância fervorosa. O mesmo valerá para Keiko, caso se torne a primeira presidenta da história do Peru. “Seja quem for o vencedor, haverá um agravamento da fragmentação política. A crise de representatividade permanecerá ante partidos pouco representativos e ante muita polarização”, advertiu.

Para Fernando Tuesta, ex-chefe do Escritório Nacional de Processos Eleitorais (Onpe) e professor de ciência política da Pontificia Universidad Católica de Peru, Castillo não poderá implementar nada do que prometeu durante a campanha. “Em meu país, existe um ditado que afirma que uma coisa é tocar com violão, outra, com tambor. Muitas das propostas de Castillo remontam ao primeiro turno, quando ele despontava como candidato quase insignificante. No segundo turno, sua postura mudou”, avaliou. De modo surpreendente, o candidato da esquerda fez declarações contrárias a agendas liberais, como a identidade de gênero, o casamento entre pessoas LGBTQIA+ e o aborto.

Impugnação

Oscar Vidarte Arévalo, cientista político da mesma universidade, explicou que um número importante da atas ou registros eleitorais (cerca de 1.200) foi impugnado. “Os partidários de Keiko tratarão de concentrar a retórica nesta questão. A princípio, parece que Castillo se encaminha para ser o próximo presidente”, disse. Ele reconheceu que a governabilidade será “muito difícil”. “No caso de vitória, Castillo não contará com o apoio do Congresso. O Legislativo se mostra muito fraturado, sem uma maioria definida, e há grupos bastante contrários a Castillo. Ao considerar o comportamento do fujimorismo nos últimos cinco anos, creio em um enfrentamento entre o Legislativo e o Executivo”, afirmou.

Ainda segundo Arévalo, Castillo terá a oposição do setor militar, que se convenceu do discurso contrário ao comunismo. “Além disso, Castillo poderá sofrer uma fratura dentro do partido Perú Libre, numa ruptura com Vladimir Cerrón (ex-governador do departamento de Junín e líder da legenda). Ele também não tem experiência na gestão da opinião pública, apesar de ser sindicalista. Será preciso ver como ele manejará a dinâmica política, enquanto presidente”, avaliou. Até 2017, Castillo estava inscrito no partido centrista Perú Posible, que levou Alejandro Toledo ao poder. No ano passado, afiliou-se ao Perú Libre, incorporando um discurso polarizador. Durante a campanha, se opôs às empresas cujas concessões provêm de recursos naturais. No âmbito da educação, prometeu uma reforma e se colocou contra a carreira do magistério. “Ele tem uma posição de esquerda com limitações conservadoras. No encerramento de campanha, fez um discurso muito duro contra os transexuais.”

Eu acho..

“Em seus comícios, durante a campanha eleitoral, Pedro Castillo anunciou o desejo de convocar uma Assembleia Constituinte e nacionalizar as empresas extrativistas. O seu plano inicial de governo pregava reformas constitucionais para mudar as condições econômicas dos investimentos e para implementar uma economia popular. Um segundo plano de governo apresentado por ele, com corte estadista. Agora, ele fala em um terceiro plano. A reação do mercado é bastante negativa, com a desvalorização do dólar e da bolsa de valores.” Milagros Campos, professora de direito constitucional da Pontificia Universidad Católica do Peru.

“Castillo mantém uma combinação de tendência de esquerda, em temas sociais, com conservadorismo. Ele vem de uma família católica; além disso, sua esposa é evangélica. É preciso recordar que, nos Andes peruanos, existe um componente majoritariamente conservador, de onde ele provém. Uma coisa é certa: Castillo seria o primeiro presidente bastante distante das elites políticas, econômicas, culturais e sociais do Peru. Ele está totalmente alheio a tudo isso.” Fernando Tuesta, ex-chefe do Escritório Nacional de Processos Eleitorais (Onpe).

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