Aos 90 anos, completados anteontem, Fernando Henrique Cardoso continua intelectual exemplar, inesgotável fonte de ideias.
Veja que uma das principais preocupações atuais é com a renegociação da dívida em países de crescimento fraco e diante da alta da inflação nos EUA. Na avaliação do secretário-geral da ONU, António Guterres, a situação é grave para além da percepção de muitos. Questão que já foi central para o Brasil, resolvida em 1993, ano em que FHC transitou entre os dois ministérios — Relações Exteriores e Fazenda — envolvidos com o problema de como renegociar uma posição viável e digna para o Brasil no mundo. Mérito e sorte. De modo geral, uma das chaves para interpretar o sucesso de FHC é, justamente, sua capacidade de captar as principais difusões normativas internacionais e as adaptar à realidade brasileira.
Algumas dessas difusões principais o fazem o mais antenado intelectual-prático e político brasileiro. Em seu governo, conseguiu a estabilidade econômica adaptando, com qualidade e autonomia, as normativas do criticado Consenso de Washington. Com uma América Latina sofrendo as consequências da mistura de alto endividamento com baixo crescimento, formou-se um consenso controverso entre as principais instituições implicadas com a questão em Washington. FMI, Banco Mundial e governo dos EUA passaram a pregar que a saída para a crise passava pela privatização, pela liberalização das trocas financeiras e comerciais internacionais, entre outros quesitos que buscavam separar o funcionamento da economia da política e da sociedade. Coisa que Guedes, atrasado, faz sem pensar, FHC, adiantado, pensou e fez diferente.
O Brasil de FHC foi o que melhor implementou o ajuste, ao entender que não dava para desacoplar a economia das questões sociais. Elas teriam que andar juntas. Em oportunidade gerada pelo governo Itamar, a autodefesa da sociedade se organizou. Dali até a transição de estratégia, que ocorreu entre 2006 e 2008 — em parte gerada pelas ilusões do pré-sal, em parte pelo entendimento errado da crise de 2008 —, o Brasil viveu sob um acordo de integrar o liberalismo na sociedade. Atualmente, voltamos ao pior, temos um liberalismo irresponsável e desintegrado — a economia finge desconhecer questões sociais para agravar a ruptura política, social e intelectual em curso.
John Ruggie — que é um acadêmico em Harvard, com longa história de serviços prestados à ONU — diz que o liberalismo integrado é o acordo que viabilizou a recuperação para os países do primeiro mundo. Reconhece, ainda, que o acordo de um liberalismo integrado “nunca foi totalmente estendido aos países em desenvolvimento”. De fato, a prática do liberalismo integrado, talvez, seja o caminho para ascensão real dos emergentes.
Por isso, é melancólico ver o Brasil se distanciar de um liberalismo integrado à la John Ruggie e sumir do mapa dos movimentos atuais nas três grandes praças do mundo: EUA, Europa e Leste Asiática. Se os vislumbres da teoria e prática de FHC e sua equipe ecoassem, o Brasil seria outro. Pois ele continua a ser uma das figuras que mais entendem de mudanças de larga escala, levando em conta restrições objetivas.
Com uma visão afetuosa da nossa cultura e pouco otimista de que grandes contradições da vida social possam ser resolvidas, FHC enxerga em seus mestres Antônio Candido e Florestan Fernandes a busca da compreensão de qual é “a capacidade de existência de grupos sociais postos em xeque pelo contato com culturas e civilizações expansivas e dominadoras”. Do contato com as difusões normativas e a percepção das estruturas colocadas no mundo vem sua ideia de dependência. Que é diferente de outras ideias que veem a dependência como algo negativo a ser superado. Para FHC, é uma condição que conforma a capacidade de existência de grupos sociais.
Como chanceler, soube fazer a defesa do interesse brasileiro pela constante (re)negociação de sua posição no mundo. Sabendo que a busca de melhorias absolutas e relativas em tempos de paz só se faz com muita criatividade e convencimento. Algo que depende de constante engajamento com quem traça os rumos do mundo. Ficou, por exemplo, marcado quando formou uma delegação pluripartidária para se reunir em Florença, na Itália, como único representante de países em desenvolvimento, com os cinco maiores líderes da social-democracia do mundo — D’Alema, Blair, Clinton, Jospin e Schroeder — em conferência sobre desafio dos governos progressistas para resolver a equação entre sociedade, economia e política, no horizonte de uma esquerda democrática.
A história não é nem conspiração, nem correnteza. Há fatos e processos. E governantes, que hoje não temos.
Paulo Delgado, sociólogo
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.