Milicianos e paramilitares
Quanto mais avança no Brasil o fenômeno das milícias, com sua teia de relações que se estendem entre os subterrâneos do crime organizado e as franjas das forças oficiais de segurança, mais nítido fica o desenho de um processo que guarda paralelos com o desenvolvimento do paramilitarismo na Colômbia. Mais do que o narcotráfico ou o fantasma de uma “importação” do conflito armado que dilacerou o país vizinho por meio século, é a violência endêmica e epidêmica que prolifera nas grandes cidades brasileiras o sintoma mais evidente do “contágio”.
A coincidência no tempo deu maior visibilidade a essas semelhanças durante a operação policial de maio passado na favela de Jacarezinho, no Rio de Janeiro. As investigações que se seguiram indentificaram traços acentuados de execução extrajudicial em boa parte das 29 vítimas causadas entre os moradores — se não em todas elas. No mesmo período, dezenas de colombianos foram mortos na onda de protestos sociais contra o presidente Iván Duque, principalmente em Cali, onde as imagens gravadas mostram atiradores à paisana disparando contra os manifestantes.
Poder paralelo
Na Colômbia, as raízes do paramilitarismo estão no combate à guerrilha de esquerda, em especial as Farc. Nos anos 1980, a expansão das frentes rebeldes coincidiu com a consolidação dos grandes cartéis da cocaína, sobretudo os de Cali e Medellín — este, tornado célebre na figura de seu líder mais notório, Pablo Escobar. Fazendeiros e narcotraficantes tinham como inimigo comum os guerrilheiros, que cobravam “impostos” nos territórios que controlavam, sob pena de “retenção”.
A resposta inicial ficou plasmada na sigla Morte aos Sequestradores, sob a qual atuava um esquadrão da morte patrocinado pelo chefão de Medellín. Latifundários e empresários tomaram a frente do processo na medida em que Escobar se envolveu no confronto direto com o Estado. Como resultado, surgiram as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), que se alastraram rapidamente pelo país e passaram a combater as Farc à margem do Exército e da polícia.
Quando aceitaram depor armas, no governo de Álvaro Uribe (2002-2010), as AUC tinham controle sobre os negócios ilegais dos antigos cartéis, desmantelados pela ação repressiva. Também exerciam influência decisiva no processo político formal: elegeram autoridades locais e deputados nacionais, e sua anuência se tornou condição indispensável para o sucesso de uma campanha.
Da droga ao “gatonet”
Nas “quebradas” do Brasil, em especial nas favelas cariocas, o alvo não era propriamente uma guerrilha — embora muito do poderio ostentado pelo crime organizado derivasse da cocaína e das armas negociadas com traficantes, guerrilheiros e paramilitares colombianos. Foi um processo análogo que ocorreu por aqui, e que se espelha tanto na “tomada” de Jacarezinho quanto em operações de imensa visibilidade, como a invasão policial do Complexo do Alemão, em 2010.
Em resumo, expulsos os “comandos” do crime, instalaram-se os milicianos. Além de passarem a controlar as “bocas de fumo”, eles se assenhorearam de praticamente tudo na vida da comunidade: construção de moradias, instalação de luz elétrica, fornecimento de gás e até a conexão pirata à internet — batizada de “gatonet”.
Receita de Medellín
A ofensiva das milícias sobre territórios dos “comandos” cariocas espelha a dinâmica observada anos antes em Medellín. Lá, às vésperas da posse de Uribe, eleito com um programa de “guerra total” às Farc, o Exército e a polícia invadiram a Comuna 13, uma das favelas que circundam a cidade, incrustadas nas montanhas da Cordilheira Ocidental dos Andes.
A área era reduto das unidades urbanas das Farc, que se enfrentavam com paramilitares aquartelados em comunas vizinhas. Ao fim de uma semana de combates, que envolveram blindados e artilharia e deixaram como cicatriz uma rede de cemitérios clandestinos, a guerrilha foi desalojada e seus postos foram ocupados pelos paramilitares.
Veio de Medellín a receita implantada a partir de 2007 pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, eleito no ano anterior com um plano de segurança que teve a consultoria de um funcionário colombiano envolvido diretamente na retomada das comunas. Cabral tomou emprestado da segunda cidade colombiana, que visitou nos primeiros meses de mandato, o modelo das UPPs, adotadas como símbolo da presença do Estado em território outrora vedado às forças oficiais.
Virou cartel
Paramilitares colombianos e milicianos cariocas têm em comum uma gênese caracterizada pela relação umbilical com as forças de segurança regulares. Mas foi no México, cujos traficantes arrebataram a parte do leão nos negócios dos chefões colombianos, que a guerra às drogas produziu o efeito colateral mais exemplar dos riscos de envolver militares em operações policiais.
Na violenta fronteira com os EUA, onde municípios ficaram sem prefeito pela falta de políticos dispostos a se tornarem alvo do crime organizado, surgiu na virada do século um cartel gestado nas entranhas do Exército. Oficiais treinados em academias norte-americanas para integrar uma unidade de elite antinarcotráfico, bem-sucedidos na destruição das redes de processamento e contrabando de cocaína, desertaram e assumiram eles próprios o controle do negócio.
Constituíram o cartel Los Zetas, um dos mais violentos da história sangrenta de uma guerra ainda sem desfecho à vista, mas com um custo em vidas que supera o registrado em alguns dos conflitos mais cruentos da história recente
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