Portia Mashigo — locutora da Mams, uma rádio comunitária localizada na cidade de Mamelodi (província de Gauteng) — teve uma surpresa desagradável, ontem. Ao chegar para trabalhar, encontrou o estúdio vandalizado. “Os equipamentos foram saqueados. Nós estamos fora do ar. Ainda é incerto quando nos recuperaremos do imenso prejuízo”, lamentou ao Correio. A invasão ocorreu durante a noite, ninguém estava na emissora no momento do ataque. Em Durban (leste), a 641km dali, a empresária Karin Shave se recuperava, ontem, do trauma da véspera. Dona de seis lojas de decoração, ela teve dois estabelecimentos ocupados pelos vândalos. “Nem mesmo durante o apartheid experimentamos algo assim. É uma destruição em massa. Nossos negócios, propriedades, bens e carros foram destruidos e roubados, sem que houvesse consequência. É devastador, estamos arrasados”, contou à reportagem.
A África do Sul enfrenta os piores distúrbios desde o fim do regime de segregação racial, há 27 anos.
Até o fechamento desta edição, a onda de violência deflagrada pela prisão de Jacob Zuma, na última quarta-feira, tinha deixado 72 mortos. O ex-presidente foi condeando a 15 meses de reclusão por desacato à Justiça, após se recusar a ser interrogado sobre casos de corrupção. Ao todo, 1.234 pessoas foram detidas, das quais 12 sob a acusação de terem provocado os distúrbios. Dez corpos foram encontrados, na noite de segunda-feira, em um shopping center de Soweto, a sudoeste de Joanesburgo. Segundo as autoridades locais, eles seriam de vândalos que morreram ao tentarem fugir das forças de segurança.
Funcionário de um posto de gasolina em Durban, Marko Chingawo, 41 anos, classificou a situação como “muito ruim”. “Nosso estabelecimento está fechado desde ontem (segunda-feira) de manhã, ante o risco de distúrbios. Os pontos nevrálgicos dos saques são as províncias de Kwazulu Natal, onde moro, e de Gautang”, disse ao Correio. De acordo com Chingawo, os simpatizantes de Zuma denunciaram tratamento injusto ao ex-chefe de Estado e convocaram manifestações em todo o país até que ele seja liberado. “Os protestos se tornaram violentos, e cidadãos se infiltraram nesses atos para saquear lojas e depósitos, além de shoppings”, acrescentou.Soldados começaram a ser enviados para as duas províncias, na tentantiva de restabelecer a ordem.
Vigilantes
Professor de inglês e DJ em Durban, Ian Trenor define o que ocorre nas duas províncias da África do Sul como “anarquia”. “Sem exagero! A maior parte dos shoppings sofre saques. Muitos subúrbios montaram bloqueios nas estradas e ruas, formados por vigilantes (civis voluntários que se voluntariam para controlar a segurança pública)”, afirmou à reportagem. Apesar de reconhecer que a prisão de Zuma teve papel preponderante na crise, Trenor acredita que os temas subjacentes da revolta social sejam a pobreza em massa, o alto índice de desemprego e a corrupção, além da ampliação da quarentena por conta da covid-19. “Também são motivos a corrupção e a proibição sobre a venda de bebida alcoólica. Com a mobilização do exército, estou confiante de que as coisas vão acalmar.”
A emissora britânica BBC divulgou que, até segunda-feira, mais de 200 shopping centers tinham sido alvos de saques. Vídeos divulgados pelas redes sociais mostravam cenas inimagináveis de pessoas carregando, inclusive, caixas eletrônicos. Em outras imagens, saqueadores eram espancados nas ruas com bastões. O ministro responsável pelas forças de segurança, Bheki Celi, prometeu que a polícia garantirá que a situação “não se deteriore ainda mais”. Em Soweto, antigo lar do ex-presidente antiapartheid Nelson Mandela, dezenas de mulheres, homens e crianças invadiram as câmaras frigoríficas de um açougue e saíram de lá com peças inteiras de carne sobre os ombros.
» Povo fala
Marko Chingawo, 41 anos, funcionário de posto de gasolina em Durban (leste)
“Eu não sei o que acontecerá. O futuro é incerto. O dano provocado levará muito tempo para ser desfeito. As pessoas perderão seus empregos, agravando ainda mais a situação causada pela pandemia. A pobreza pode provocar instabilidade.”
Portia Mashigo, locutora de rádio comunitária em Mamelodi (província de Gauteng)
“Nunca havia testemunhado violência de tamanha magnitude. Em algumas partes, pessoas comuns estão se levantando contra os saqueadores e protegendo os bens defuncionários. A situação saiu do controle, e graças à população a ordem está sendo gradualmente restaurada.”
Karin Shave, empresária em Durban
“Esta é a situação mais confusa e assustadora do que qualquer coisa que conhecemos ou experimentamos. Não ficou claro quem está por trás de tudo isso, quem impulsiona essa destruição total. A resposta do governo foi fraca e totalmente incapaz de proteger as empresas.”
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