ENTREVISTA

Elisa Loncon: 'Constituição deve reconhecer a pluralidade do Chile'

Membro da etnia mapuche, a acadêmica de 58 anos falou ao Correio sobre os desafios de comandar a redação de uma nova Carta Magna para o país e de romper com a herança política da ditadura do general Augusto Pinochet. Presidente da Constituinte quer texto pluricultural

Pela primeira vez, uma indígena terá o papel de conduzir o Chile à redação de uma nova Constituição e à completa ruptura com a herança da ditadura do general Augusto Pinochet (1974-1990). Durante os próximos nove meses, Elisa Loncon, pertencente à etnia mapuche, presidirá a Assembleia Constituinte que pretende gestar uma Carta Magna plural e que respeite os direitos e a existência dos povos originários do Chile. Aos 58 anos, Loncon é acadêmica do Departamento de Educação da Faculdade de Humanidades da Universidade de Santiago e especialista em educação intercultural bilíngue. Em sua posse, no domingo passado, subiu à tribuna vestida com um traje típico e discursou em mapudungún, a língua dos mapuche — indígenas do centro-sul do Chile, estimados em 1,3 milhão de pessoas. Em entrevista ao Correio, por telefone, Loncon falou sobre a perseguição à etnia, admitiu que a nova Carta Magna pode ajudar a saldar uma dívida com os mapuche e prometeu que “esta será uma Constituição paritária”, ao citar o papel das mulheres na reconstrução do país.

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O governo de Sebastián Piñera tem ampliado o conflito do Estado com os mapuche. O seu nome para presidir a Constituinte pode lançar luz à situação de sua etnia?
Tampouco os últimos governos foram tão distintos em relação aos mapuche. O que Piñera fez foi assumir, de maneira mais forte, uma política que se baseia em sistema rígido de segurança. Ele fortaleceu o problema da relação com o Wallmapu (a terra da nação mapuche), a militarização de Wallmapu. Mas essa militarização começou em 1990, com a chegada do governo da Concertación (coalizão de partidos políticos de centro-esquerda). No governo de (Patricio) Aylwin (1990-1994), 144 mapuche foram condenados por associação ilícita. Depois, foram incrementando (a militarização). Durante o governo de (Michelle) Bachelet, morreu Matías Catrileo (estudante mapuche assassinado em uma ocupação de terras, em 3 de janeiro de 2009). Bachelet instalou o Comando Jungla (equipe especial dos Carabineros, a polícia do Estado). Piñera incrementou a repressão. Não se trata do meu nomeamento ou da instalação da Assembleia Constituinte. Mas de como as nações originárias instalarão os temas dos direitos à plurinacionalidade na Constituição. Poderá haver um respiro, no sentido de que se abre uma porta para a justiça com todas as nações originárias. Nós vamos instalar a nacionalidade, a interculturalidade, os direitos à natureza. Vamos ver de que maneira esses direitos serão garantidos.

Qual é o simbolismo de uma mapuche à frente da redação de uma nova Constituição? Este é o momento de saldar dívidas históricas com o seu povo?
Sempre se pedirá essa justiça histórica. Não apenas a justiça histórica, mas todo o reconhecimento da vulneração dos direitos das nações originárias exige uma mudança de política. Reconhecer, por parte do Estado, que se fragilizaram os direitos. É preciso instalar formas de reparar violações. Com a Constituição, esperamos que se reconheça a vulneração dos direitos humanos das nações originárias. Não apenas com os mapuche, mas com todas as nações originárias.

Como a senhora analisa a atual Constituição do Chile e quais as heranças da ditadura de Pinochet?
A Constituição é a herança de Pinochet. A Carta Magna, para começar, diz que o Chile é uma nação única, indivisível. Esse caráter de nação única marginaliza os direitos de todas as nações originárias. O assunto do mínimo de dois terços (exigência necessária para mudar o texto) foi instalado pela ditadura para que a cidadania jamais tivesse o direito de modificá-la. É uma amarra que deixaram para que os militares sempre se mantivessem no controle político e econômico. O modelo econômico que se instala implicou, para o Chile, toda a incorporação, a neoliberalização da economia. Abriu-se espaço para empresas transnacionais, que finalmente são as que levam a riqueza do Chile. Com isso, o Chile, o sistema e a sociedade se empobreceram. As políticas sociais são, de certa forma, políticas individualistas. Elas não favorecem nem garantem direitos das comunidades, dos povos, mas fortalecem o livre mercado e a livre concorrência. Alguns podem pagar e ter mais (recursos), e outros nada têm e não possuem direito à educação e à saúde digna.

Quais aspectos cruciais devem ser contemplados na nova Carta?
Uma nova Constituição tem que reconhecer a pluralidade de nações que integram o país que se chama Chile. Tem que garantir os direitos individuais, os direitos sociais individuais dos povos, o direito a uma saúde pública de qualidade, a uma educação de qualidade, a uma aposentadoria digna. Mas, em matéria de nações originárias, o sistema educacional tem que ser um que incorpore a diversidade cultural. No âmbito de todo o povo do Chile, o sistema educacional precisa instalar uma mentalidade, princípios transversais de respeito à diversidade dos povos originários. Precisa injetar, no imaginário do Chile, a representação concreta das mulheres. Esta será uma Constituição paritária. As mulheres têm que se encaminhar à recuperação de seus direitos, que foram vulnerados pelo patriarcado e pelo colonialismo. A Constituição tem que garantir os direitos da Mãe Natureza. Com a Constituição de Pinochet, a água foi privatizada. Essa privatização é nefasta, pois água implica vida. Ao se privatizar a água, não se garante a vida para os povos originários e para todas as comunidades do Chile. A mesma empresa extrativista das florestas e da mineração tem contaminado e destuído recursos naturais. Isso impacta no empobrecimento. O Chile tem sido dependente de um centralismo da capital. As pessoas vêm até Santiago para arrumarem trabalho. Em outros locais não há emprego. A Constituição tem que resolver isso e dar poderes às regiões para que participem das decisões e das ideias de desenvolvimento.

A inclusão dos indígenas na Constituição é algo sem precedentes no mundo?
Nós, como nações originárias, vamos contribuir para que tenhamos uma Constituição plurinacional e intercultural, que respeite os direitos da Mãe Natureza. No mundo, há Constituições com distintos níveis de reconhecimento dos direitos dos povos. Qual o nível de aprofundamento de reconhecimento que nós conquistaremos? Vai depender do espaço de deliberação democrática. A sociedade terá que entender que as nações originárias têm que avançar, e que seus direitos coletivos devem ser respeitados. E seus direitos de nação incluem seu território, seu mecanismo de participação e de definição da política, como os direitos à autodeterminação dos povos, os seus direitos linguísticos. Então, esta Constituição chilena assumirá o aporte de outra Constituição em matéria de plurinacionalidade e diversidade cultural e linguística.

Quais as principais demandas ou problemáticas do Chile que ainda não foram contempladas pela Constituição de 1980?
Aí está o tema da centralização administrativa, da centralização do governo. As regiões foram povoadas e submetidas à dependência da capital. O Chile tem um governo de sistema presidencialista. E este sistema deveria ser mais compartilhado com a autonomia das regiões. A autonomia das nações originárias implica, também, em um modo de descentralização do poder. Ou seja, dividir o poder entre os povos.

Como a Constituição pode contribuir para uma sociedade mais paritária e plurinacional?
Instalando os direitos dos diferentes povos, das diferentes regiões; aprofundando um sistema democrático participativo, em que a descisão não é centralizada no presidente, mas é o povo quem decide, as regiões que decidem. Uma Constituição que também seja paritária, enquanto garantidora dos direitos das mulheres e das nações originárias.

Elisa Loncon por Elisa Loncon...
Sou filha da vida mapuche e observo o mundo de maneira diferente, enquanto me toca compreender a sociedade não mapuche. Também me ajuda estar dentro dos grupos mais deslocados. Pertencer a esses setores que foram combatidos e resistir. Essa resistência me dá uma maneira de estar no mundo, onde os desafios são possíveis de serem vencidos.