Terrorismo na agenda do Itamaraty
O Brasil não figura entre os alvos centrais e claros, mas ficou evidente para os integrantes do Conselho de Segurança (CS), o órgão crucial do sistema de poder das Nações Unidas, que o Afeganistão retorna ao centro das preocupações para os próximos meses ou anos. O país volta a ocupar uma cadeira não permanente do CS, em janeiro, e deve fazê-lo com um velho conhecido da comunidade internacional colocado na berlinda.
Nas últimas duas décadas, o Afeganistão esteve sob ocupação de uma coalizão ocidental, liderada pelos EUA. O objetivo imediato da intervenção foi afastar do poder a milícia islâmica Talibã, que tinha entre seus aliados a rede terrorista Al-Qaeda. Foram 10 anos até que o então presidente dos EUA, Barack Obama, pudesse exibir como troféu a cabeça de Osama bin Laden, mentor e mandante dos atentados de 11 de setembro de 2001.
Caçar o responsável pelas mais de 3 mil mortes dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono mostrou-se, porém, a tarefa mais fácil, apesar do tempo gasto na empreitada, do que establilizar o país. Agora, as últimas forças externas se retiram apenas para assistir ao retorno dos milicianos extremistas ao poder.
Duro de roer
Deixando à parte considerações de ordem moral e ideológica, por um momento, a ressurgência dos talibãs parece confirmar, na ordem prática, a mesma máxima que levou os EUA e potências ocidentais aliadas a apoiar, financeira e militarmente, a resistência dos afeganes à ocupação militar da hoje extinta União Soviética, entre 1979 e 1989.
Datam desse período imagens, até certo ponto constrangedoras, de um enviado do então presidente dos EUA, Ronald Reagan, mostrando a representantes dos mujahedin — como eram conhecidos os combatentes afegãos da resistência anti-soviética — o funcionamento de mísseis antiaéreos Stinger, lançados do ombro. Com eles, os guerrilheiros criaram um inferno para as tropas de Moscou. Na plateia que assistia à exibição, em um campo de refugiados no vizinho Paquistão, estava Bin Laden, em pessoa.
Raiz profunda
O que o retorno do Talibã, aparentemente irresistível, parece demonstrar é sua natureza inegável como movimento com fundamentos políticos — por mais que encarne valores repelidos pelo Ocidente. A milícia perdeu no período seu líder quase mítico, o mulá Omar. Viveu divisões internas e, aparentemente, tomou distância da Al-Qaeda remanescente após a execução de Bin Laden — sintomaticamente, encontrado por comandos de elite americanos em território paquistanês, mais perto da capital, Islamabad, que da fronteira afegã.
Se a morte do líder terrorista não liquidou a Al-Qaeda, menos ainda debilitou seus anfitriões no caótico Afeganistão pós-soviético. A pergunta que emerge, agora, é quanto à sobrevida que a rede de Bin Laden poderá ter com a volta ao poder dos antigos aliados em Cabul.
Mosaico étnico
Na agenda do Conselho de Segurança da ONU para 2022, com o Brasil na bancada, a instabilidade do Afeganistão tende a ocupar o horário nobre. Antes de mais nada, o retorno dos fundamentalistas ao poder central tende a reabrir questões relativas aos direitos humanos que pareciam vencidas: a opressão das mulheres, simbolizada na saga da menina Malala Yusufzai pelo direito a frequentar a escola, deve recuperar as manchetes.
Mais do que as considerações de ordem ética, porém, a comunidade internacional será novamente desafiada a examinar o complexo mosaico que compõe a população do Afeganistão — e do vizinho Paquistão. Considerações religiosas à parte, os talibãs encarnam tradições e costumes da etnia predominante no país, a dos pashtuns. Eles formam, por sinal, a maioria da população nas regiões do lado paquistanês da fronteira, e jogam papel não desprezível no jogo político do país vizinho.
Fator saudita
Agora, como há 20 ou 30 anos, os movimentos no tabuleiro afegão dependem, em alguma medida, dos lances definidos por um aliado chave dos EUA no Oriente Médio. O Talibã original medrou entre os filhos dos mujahedin anti-soviéticos, educados em madrassas (escolas religiosas muçulmanas) estabelecidas no Paquistão pela Arábia Saudita. Elas difundiam a versão saudita do islã, o wahabismo, marcada pelo puritanismo. Dela derivam, por exemplo, as noções que balizaram a Al-Qaeda de Bin Laden — hostil ao comunismo soviético, de início, mas igualmente avesso à influência americana no país e na região.
O Afeganistão é país sem saída para o mar, mas ocupa uma posição estratégica na geopolítica da Ásia Central. Faz fronteira com o Paquistão e o Irã, dois países centrais na estratégia americana para a região. Toca a China, no extremo oriental, e ao norte tem as ex-repúblicas soviéticas que se perfilam, hoje, como uma espécie de “tampão” para a Rússia.
Como nas décadas finais do século 20, o “campo minado” afegão é parte essencial para a geopolítica da monarquia saudita, peça essencial da estratégia americana no chamado “grande Oriente Médio”.
Pega-varetas
As próximas semanas e meses prometem emoções novas a cada capítulo da novela afegã. E desenham para 2022 um quadro de inquietações internas e instabilidades regionais. Será, em qualquer circunstância, tema recorrente no Conselho de Segurança da ONU — inclusive pelos receios antecipados de uma recorrência do terrorismo, com desdobramentos potenciais além das fronteiras.
Com a cadeira de membro não permanente que ocupará no CS, o Brasil será novamente chamado a se pronunciar, a votar e, eventualmente, a participar de iniciativas para solução da crise afegã. O Itamaraty se verá diante de um desafio semelhante ao jogo infantil em que os participantes são desafiados a remover varetas de um emaranhado, sem deslocar nenhuma delas além da escolhida para ser retirada.
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