Conexão diplomática

Correio Braziliense
postado em 20/08/2021 21:04

Duas táticas na política externa


Engajar ou isolar?

O dilema clássico para os estrategistas e formuladores de política externa se apresenta uma vez mais na crise do Afeganistão. Diante da realidade do retorno do Talibã ao poder, qual a tática que serve melhor aos objetivos da diplomacia naquela região crítica da Ásia Central? O país está no entroncamento que dá acesso entre China, Rússia, Índia e, em última instância, o Golfo Pérsico, via Irã ou Paquistão.
O movimento inicial dos EUA, dos aliados europeus e ocidentais e mesmo do Japão é de tomar distância. As embaixadas foram fechadas ou transferidas, com boa parte do pessoal retirado — e a preocupação imediata de cada governo é com a repatriação dos próprios cidadãos. Praticamente deixam de existir canais diretos de comunicação com as novas autoridades em Cabul.
Ao fim de 20 anos de uma ocupação militar cujo objetivo era tirar do poder os talibãs e dar caça a Osama bin Laden e à Al-Qaeda, o saldo é de um gasto na casa dos trilhões de dólares e alguns milhares de baixas — civis, na maioria, como tem sido nos conflitos armados mais recentes. As forças de segurança organizadas e treinadas pela Otan desmancharam como um castelo de areia. O equipamento bélico entregue a elas está, hoje, em mão dos milicianos fundamentalistas.

Marco zero

Do ponto de vista de Washington e das capitais europeias, o cenário afegão se assemelha, de certa maneira, ao das ruínas do World Trade Center, em 11 de setembro. Menos no aspecto físico, agora, mas em especial no que diz respeito ao arcabouço institucional: as tropas estrangeiras saem sem deixar para trás nenhum traço de uma democracia, ainda que incipiente.
É cedo para determinar em qual medida o Talibã volta à cena para retomar o roteiro escrito entre 1996 e 2001, quando governou o país enfrentando resistência localizada no norte, na fronteira com Uzbequistão e Tajiquistão. Hoje, esse obstáculo parece inexistente, por ora. Mas os primeiros sinais emitidos de Cabul soam algo contraditórios: primeiro, um discurso de aparência mais pragmática e moderada; depois, repressão a descontentes e a proclamação do Emirado Islâmico, assentado na interpretação peculiar dos mulás talibãs para a sharia — o código legal e de costumes do islã.

Não tem vácuo

As cenas de desespero no aeroporto de Cabul, com milhares de afegãos tentando deixar o país para o destino que fosse, fazem eco aos relatos dramáticos daqueles que, de fora, pedem que sejam socorridos os que ficaram para trás. Como pano de fundo, notícias sobre perseguição sistemática dos talibãs aos que, de alguma maneira, serviram aos governos anteriores e às forças de ocupação.
Do ponto de vista das potências que se retiram, porém, são mínimas as opções para interceder pela proteção dos direitos humanos, antes de tudo, das mulheres e meninas. Sem canais diplomáticos, restam as vias de pressão: isolamento, sanções e, em último caso, intervenção militar. Esta porém, parece afastada a menos que tome vulto a ameaça realmente considerada pelos governos ocidentais: o retorno das bases terroristas ao Afeganistão.
Porém, como o vácuo não costuma durar muito no terreno político, o espaço aberto pelos EUA e aliados começa a ser ocupado. China e Rússia, na contramão das demais potências, mantiveram suas embaixadas em pleno funcionamento, na mesma Zona Verde de Cabul onde as missões ocidentais se mantinham, aparentemente seguras, até semanas atrás. Mais que isso, dias antes da entrada triunfal em Cabul, emissários políticos do Talibã reuniram-se em Pequim com o chanceler Wang Yi.

A tática do urso

A China, em especial, se apresenta no “marco zero” afegão como parte de uma reinserção discreta, porém constante e consistente, na geopolítica global. Para uma civilização que se fez conhecer desde a antiguidade como o “império do meio”, o intervalo de dois séculos de relativo ostracismo significa pouco mais que uma piscadela. Afora a projeção no cenário internacional, o regime de Pequim constrói pontes com o Talibã de olho em uma preocupação absolutamente imediata: mitigar e conter um possível efeito na região de Xinjiang, fronteiriça ao Afeganistão e habitada pela etnia uigur, majoritariamente muçulmana.
Foi com razões semelhantes que, em 1979, a hoje extinta União Soviética ingressou com tropas no Afeganistão, a pedido de um governo pró-Moscou estremecido por disputas internas e acossado por uma nascente insurgência islâmica. Tajiquistão, Uzbequistão e os demais países da Ásia Central eram na época repúblicas soviéticas. Lá, como entre os afegãos, repercutia intensamente o terremoto político da Revolução Iraniana, que substituiu a monarquia pró-EUA por uma república islâmica.
As tropas soviéticas se retiraram 10 anos mais tarde, com resultados semelhantes aos colhidos agora pela Otan — embora em condições mais controladas. Foi no cenário de semianarquia que se instalou no país que o Talibã surgiu e se impôs, de maneira fulminante, a partir de campos de refugiados e madrassas (escolas religiosas) no Paquistão.
A Rússia, sucedânea da URSS, retorna à cena com a bagagem da experiência soviética e com os concursos de um diplomata tido entre os mais hábeis da atualidade. O chanceler Sergei Lavrov foi peça-chave na costura de acordos pontuais que responderam a momentos cruciais na guerra civil da Síria — e preservou um aliado estratégico à base do abraço de urso. Lavrov representou a tática do engajamento, oposta à do confronto, também na crise nuclear com o Irã e nos desdobramentos da invasão americana ao Iraque — de onde surgiu o Estado Islâmico, a partir do braço local da Al-Qaeda.
Pela ótica do Kremlin, “cercado” nas fronteiras ocidentais pela expansão da Otan, a reinserção no jogo diplomático passa pela consolidação de um eixo, alternativo a EUA e Europa, com China, Irã e Turquia como parceiros preferenciais.

 

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