AFEGANISTÃO

Vozes sufocadas: Correio ouve quatro mulheres em Cabul

Uma semana após a volta do Talibã ao poder, o Correio ouviu quatro mulheres de Cabul. Elas falaram sobre as angústias e o horror de serem reprimidas pela milícia fundamentalista islâmica que dirigiu o país entre 1996 e 2001

Rodrigo Craveiro
postado em 22/08/2021 07:03 / atualizado em 22/08/2021 07:06
 (crédito: Arquivo pessoal/ Divulgação)
(crédito: Arquivo pessoal/ Divulgação)

Sediqa Hassani, 23 anos; Fatima Safari, 24; Rahela Jafari, 27; e Mariam Wardak, 37. Mulheres nascidas no Afeganistão, elas têm algo em comum: coragem. Recusam-se a utilizar uma mordaça. Se em seu país têm a voz sufocada pelo retorno do Talibã ao poder, em outras nações elas fazem questão de ecoar o grito de resistência. As três primeiras eram novas demais quando os insurgentes criaram o chamado Emirado Islâmico do Afeganistão e impuseram uma tirania religiosa no país. À época, Mariam vivia nos Estados Unidos. O Correio conversou com as quatro mulheres e publica os depoimentos, em primeira pessoa, sobre a angústia, a esperança e o desejo de não terem os direitos ceifados pela sharia, a lei islâmica implementada de forma estrita pelo Talibã.

Nas últimas semanas, desde o início do avanço dos insurgentes pelas 34 províncias do país, Sediqa pensou em se matar. “Com o Talibã, retrocederemos várias décadas”, afirmou. Fatima mudou o comportamento radicalmente: deixou de escutar música alta, mesmo dentro de casa; quando sai à rua, cobre as mãos. Rahela duvida de uma mudança de comportamento do Talibã, ainda que o porta-voz Zabihullah Mujahid tenha prometido respeito aos direitos das mulheres, dentro dos parâmetros dos valores islâmicos. O futuro das afegãs, sob novo regime do Talibã, é uma incógnita. A grafiteira afegã Shamsia Hassani, que conta com 133 mil seguidores no Instagram, usou a arte para traduzir a opressão às mulheres, em desenhos que viralizaram na internet.

"Quando o Talibã avançava sobre as províncias, nós escutamos que forçaram garotas a se casarem com os mujahedine (combatentes islâmicos). Soubemos que estupraram algumas meninas. Nas reuniões de garotas, escutei uma frase em comum. Todas as garotas educadas querem cometer suicídio. ‘Se o Talibã me estuprar, é melhor eu morrer’, disseram. É devastador. Para ser honesta, pensei em suicídio. Com o Talibã, retrocederemos várias décadas.

Estou em choque desde a tomada de poder em Cabul. Aqui, todas as escolas e universidades estão fechadas. Em Herat (oeste), os talibãs disseram às universitárias para que voltassem para casa e avisaram que tomarão as decisões por elas. O Talibã tem um retrato diferente do islã. Para eles, as mulheres são apenas para o uso sexual, para cuidar dos filhos e para fazer o trabalho doméstico. Se o mundo reconhecer o Talibã como governo, será o início de um pesadelo para as mulheres. Tenho medo. Um amigo trabalha no Ministério do Ensino Superior. Na terça-feira, o Talibã foi até lá exigiu o fim dos cursos de cinema e de música.”

Sediqa Hassani, economista, 23 anos, formada pela Universidade de Cabul

"Quando eu soube que Cabul estava sob controle do Talibã, fiquei muito preocupada com a educação das meninas, com o que construímos em duas décadas no Afeganistão. Pensei em toda a violência aplicada pelos talibãs contra as mulheres. Tenho certeza de que não serão muito bons para conosco. Queremos poder ir ao trabalho. Todas as afegãs estão sob risco absoluto. Espero que as mulheres possam ir ao mercado e à universidade.

Todas as mulheres estão em perigo e pensam em como abandonar o Afeganistão. Minha mãe está sempre preocupada. Pede que eu não saia de casa com roupas curtas ou calça. Não posso escutar música alta. Não posso andar pelas ruas com as mãos à mostra. Antes de o Talibã chegar ao poder, as garotas iam com o namorado na cafeteria do bazar. Fazíamos festas, tomávamos chá. Agora, é impossível. Li sobre a guerra nos livros de história. É a primeira vez que a vivencio. Não se pode crer nas promessas do Talibã. Às vezes, penso que a guerra no Afeganistão é contra a mulher. Sinto falta da minha bandeira, do meu Afeganistão. Esperamos que possamos erguer a voz e colocar um fim no Talibã.”

Fatima Safari, especialista em gestão educacional, 24 anos, moradora de Cabul

"Eu não me lembro de nada do regime anterior do Talibã. Mas eu ouvi histórias trágicas e horríveis. As afegãs estão entre a esperança e o medo. Por um lado, acham que o Talibã mudou e que o grupo trabalha em prol dos direitos das mulheres, de acordo com a sharia (lei islâmica), como disseram. Por outro lado, temem os talibãs, pois pensam que eles terão o comportamento visto no regime anterior. Para mim e para outras mulheres, isso é inaceitável. Nenhuma afegã deseja voltar aos tempos sombrios. As mulheres querem melhorias.

O comportamento das mulheres nas ruas começa a mudar. Nós temos que usar vestidos longos e cobrir todo o corpo. Não podemos ostentar nada ligado à moda. Acho prematuro julgarmos as atividades e o comportamento do Talibã. Eles dizem que mudaram e que darão espaço às mulheres, como o direito ao trabalho e à educação. No entanto, o Talibã tem que demonstrar isso na prática. Até não vermos nada na prática, não poderemos confiar nos talibãs.”

Rahela Jafari, 27 anos, membro da sociedade civil, moradora de Cabul

 

"Não sei o que será ser uma mulher sob o regime do Talibã. O que nós fomos e como eles nos trataram, nos anos 1990, foi algo muito evidente. De acordo com notícias que recebi sobre como as mulheres são tratadas pelo Talibã, elas são obrigadas a usar burca nas províncias e, nas cidades, têm sido cuidadosamente monitoradas. Há mulheres que protestaram contra o Talibã, na frente do palácio, e parece que o Talibã não as importunou. Mas isso é uma amostra de relatos de mulheres com quem tive acesso e de dados das redes sociais.

Assisti à entrevista na qual o Talibã falou sobre os direitos das mulheres dentro do prisma dos valores islâmicos. Fiz um apelo a todos os clérigos muçulmanos do Afeganistão a fornecerem detalhes sobre essa retórica. Essa forma genérica de discurso não pode ser interpretada pela metade nem pelo Talibã nem pela comunidade internacional. Meu papel é empoderar as afegãs a terem uma função na sociedade. Nós oferecemos suporte técnico em suas áreas, além de apoio emocional e psicológico ante os traumas que enfrentam. Estou nervosa sobre como a sharia será interpretada. A sharia fornece às muçulmanas lugar de destaque na sociedade. Mas a forma como se interpreta a sharia é o mais importante.”

Mariam Wardak, 37 anos, ativista social, fundadora da ONG HER Afghanistan, moradora de Cabul


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