Primavera Árabe

Temor e resignação no berço da revolução da Tunísia

Os gritos de "dignidade" e "trabalho" ouvidos durante a revolução voltaram a dominar as manifestações recentes.

Agência France-Presse
postado em 30/08/2021 08:52 / atualizado em 30/08/2021 08:52
 (crédito: ANIS MILI / AFP)
(crédito: ANIS MILI / AFP)

Para muitas pessoas em Sidi Bouzid, berço da revolução de 2011 na Tunísia que desencadeou a Primavera Árabe, a concentração de poderes do presidente Kais Saied foi um mal necessário.

Mas também há temores na cidade de que o fechamento do Parlamento, a destituição do primeiro-ministro e os plenos poderes assumidos por Saied, que aconteceram em julho, possam transformar a Tunísia em uma ditadura.

Foi nesta cidade da região central do país, que o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi ateou fogo ao corpo, em 17 de dezembro de 2010, exasperado com o assédio policial.

O suicídio provocou uma revolta sem precedentes que deixou 300 mortos e derrubou o ditador Zine El Abidine Ben Ali.

Uma década depois, porém, a esperança de um futuro melhor se dissipou e abriu espaço para a raiva e para a decepção com os políticos deste país do norte da África e com sua incapacidade de melhorar as condições de vida da população.

Os gritos de "dignidade" e "trabalho" ouvidos durante a revolução voltaram a dominar as manifestações recentes.

Ahmed Ouni, um desempregado de 36 anos, não está feliz com a situação.

"Os últimos 11 anos foram piores que os 23 anos com Ben Ali. O Parlamento e o governo nos deixaram na pobreza. Então, é melhor que saiam", declarou à AFP.

"Como os tunisianos escolheram Saied, ele tem respaldo para governar o país e fazer o que deve ser feito. Confiamos nele", completou.

As infraestruturas de Sidi Bouzid melhoraram e mais negócios foram abertos, mas algumas pessoas se consideram marginalizadas e esperam que o governo Saied melhore suas vidas.

Plenos poderes

Saied, um professor aposentado e especialista em direito constitucional, foi eleito presidente em 2019.

Em 25 de julho, o presidente invocou a Constituição para assumir plenos poderes, depois de suspender o Parlamento por 30 dias.

Em 23 de agosto, ele anunciou que as duas medidas prosseguiriam por tempo indeterminado.

"É uma cirurgia necessária para conseguir estancar a hemorragia", comentou Abdelhalim Hamdi, trabalhador da construção civil de 47 anos e coordenador dos protestos em Sidi Bouzid.

"Os políticos no poder roubaram nossos sonhos e ambições", criticou, apoiando a abolição da Constituição, a qual ele considera "elaborada para servir interesses mesquinhos".

Para muitos tunisianos, era inevitável suspender a Constituição, que teve a aprovação celebrada em 2014 pela comunidade internacional.

"É um mal necessário para salvar o país, inclusive se levar a um regime autoritário", afirma Sami Abdeli, de 38 anos, em uma praça do centro de Sidi Bouzid, perto da escultura em homenagem a Mohamed Bouazizi com a palavra "liberdade".

Os moradores da cidade falam com facilidade sobre política, mas alguns parecem relutantes a comentar as ações de Saied.

"Constatamos que a autocensura retornou", disse Mounira Bouazizi, blogueira e coordenadora local do Observatório Internacional de Imprensa e Direitos Humanos.

Expurgo anticorrupção

"As pessoas não querem mais falar de maneira livre e dizer o que realmente pensam", comenta, depois de destacar que os seguidores de Saied nas redes sociais "usam uma linguagem ofensiva e não aceitam críticas ao presidente".

Yossra Abdouni, uma estudante de Engenharia de 25 anos, mostra-se prudente.

"A ideia de uma pessoa com todos os poderes executivos me assusta", admite. Saied "foi vago sobre suas intenções, não apresentou um programa", completou.

"Mesmo que a situação econômica e social se agrave e a classe política esteja fragmentada, ao menos temos liberdade e democracia", afirmou.

A prorrogação do fechamento do Parlamento foi considerada um golpe pelo Ennahdha, partido islamita majoritário no Legislativo.

Desde então, legisladores, juízes e empresários enfrentam proibições de viagens e detenções domiciliares como parte de um expurgo anticorrupção, o que provoca temores de um retrocesso das liberdades.

"Saied avança para um regime individualista e ditatorial. Escuta apenas a própria voz", afirmou Rabeh Zaafouri, diretor do escritório da Liga Tunisiana dos Direitos Humanos em Sidi Bouzid.

"Até o momento, ele tomou apenas decisões populistas e caóticas que ameaçam o processo democrático e são um obstáculo à vida política", comentou Zaafouri.

Os tunisianos "nunca permitirão uma volta às condições de antes da Revolução de 2011", conclui.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação