O som intermitente de tiros e os gritos de Allahu Akbar (“Deus é maior”) ecoaram pelas ruas de Cabul, pouco depois de 1h de hoje (17h30 de ontem em Brasília). Minutos antes, o general Kenneth McKenzie, chefe do Comando Central dos Estados Unidos, declarou na tevê: “Eu estou aqui para anunciar o fim de nossa retirada do Afeganistão, e o fim da missão militar para resgatar cidadãos americanos, estrangeiros e afegãos vulneráveis”. O último avião cargueiro C-17 com soldados norte-americanos decolou do Aeroporto Internacional Hamid Karzai às 23h59 de ontem (16h29 em Brasília). A bordo, também estavam o embaixador dos EUA no país e um general.
O Pentágono divulgou a foto do major-general Chris Donahue, o último militar a entrar na aeronave. "Nosso país tornou-se totalmente livre e independente”, comemorou Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, ao anunciar que homens da milícia fundamentalista islâmica celebraram com disparos para o alto.
O encerramento de duas décadas de ocupação e da guerra mais longa da história dos EUA foi lacônico e polêmico: cidadãos norte-americanos foram deixados em Cabul. “Há muito de comovente associado a essa partida. Não retiramos todos aqueles que desejávamos. Acho que, se tivéssemos ficado mais 10 dias, não teríamos tirado todo mundo de lá”, admitiu McKenzie. Entre 100 e 200 norte-americanos ainda estão em Cabul, de acordo com o Departamento de Estado, que busca calcular o número exato.
Para 38 milhões de afegãos, o futuro reserva medo e insegurança ante o regime controlado pelo Talibã e a presença de terroristas do Estado Islâmico-Khorasan (ISIS-K) no país. Na última quinta-feira, um homem-bomba se explodiu e matou 170 pessoas diante do Portão Abbey (leste) do aeroporto. Entre os mortos, 13 norte-americanos, incluindo 11 marines (fuzileiros navais). Os momentos que antecederam a retirada foram muito tensos. O ISIS-K reivindicou o disparo de cinco foguetes na região do aeroporto — os artefatos foram interceptados por um sistema de defesa antimísseis norte-americano.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, prometeu que falará hoje à nação “sobre a decisão de não ampliar nossa presença no Afeganistão”. “Quero agradecer aos nossos comandantes e aos homens e mulheres que servem sob suas ordens pela execução da perigosa retirada do Afeganistão como programada (...), sem mais perdas de vidas americanas. Nos últimos dias, nossas tropas realizaram o maior resgate aéreo da história dos EUA, removendo 120 mil cidadãos dos EUA, de nossos aliados e de aliados afegãos. (…) Agora, nossa presença militar de 20 anos no Afeganistão terminou”, declarou, por meio de um comunicado. Biden pediu ao secretário de Estado, Antony Blinken, que lidere a “contínua cooperação com nossos parceiros internacionais para garantir passagem livre de quaisquer americanos, parceiros afegãos e estrangeiros que desejarem abandonar o Afeganistão”.
“Novo capítulo”
Blinken foi a primeira autoridade de alto escalão dos EUA a aparecer em público desde o anúncio da retirada. Ele se comprometeu a ajudar todos os norte-americanos que quiserem partir do Afeganistão e anunciou a suspensão da presença diplomática de Washington em Cabul. O Departamento de Estado transferiu o staff para Doha, capital do Catar. “Um novo capítulo do engajamento dos EUA com o Afeganistão começou. Nós o lideraremos pela diplomacia. A missão militar está encerrada. Uma nova missão diplomática começou”, afirmou.
O secretário classificou a operação de retirada como “uma das mais difíceis da história dos Estados Unidos” e “um dever sagrado”. Blinken revelou que a decisão de não estender a presença de tropas para depois de hoje foi unânime entre todos os comandantes militares do país. Segundo o chefe da diplomacia norte-americana, o governo Biden somente se envolverá com o regime do Talibã “se for do interesse nacional vital” dos Estados Unidos. Ele advertiu que não trabalhará com os insurgentes afegãos “com base na confiança ou na fé”, mas em compromissos firmados pela milícia em relação a livre trânsito para os cidadãos, proteção aos direitos humanos e prevenção de aliança com terroristas. “Qualquer legitimidade terá que ser conquistada”, avisou.
Muitos dos afegãos se sentem abandonados pela Casa Branca. “Trabalhei com os estrangeiros. Eu e minha família não conseguimos escapar. Aguardo o momento em que o Talibã chegará para nos matar”, desabafou ao Correio Abdul Maroof, 30 anos, gerente de trabalhadores da Embaixada da Holanda, em Cabul. “Preciso de ajuda para fugir com minha família. Por favor, se puderem, me ajudem.”
Sob a condição de usar nome fictício, o cientista político Ali, 24, disse acreditar que o próprio futuro está “arruinado”. “Quero migrar. Aqui, existe uma guerra diária. As pessoas estão irritadas e com medo. O futuro do Afeganistão é péssimo. Nesta manhã (ontem), houve vários foguetes em Cabul. Todo o meu povo está com medo e só quer fugir do país”, afirmou à reportagem.
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