A fatura do vexame peronista nas primárias para as eleições legislativas de 14 de novembro chegou à Casa Rosada com custo alto. De uma vez, cinco ministros e seis assessores apresentaram a demissão ao presidente Alberto Fernández, o que provocou uma crise sem precedentes na cúpula do poder, em Buenos Aires. “Motiva a presente (carta) colocar a sua disposição minha renúncia ao cargo de Ministro do Interior da Nação, com o qual tenho sido honrado desde 10 de dezembro de 2019. Ao escutar suas palavras, no domingo à noite, quando falou da necessidade de interpretar o veredicto expressado pelo povo, considerei que a melhor maneira de colaborar com essa tarefa é colocando minha renúncia à sua disposição”, escreveu o ministro do Interior, Eduardo “Wado” de Pedro, em carta entregue ontem a Fernández.
Foi seguido pelos ministros Martín Soría (Justiça), Roberto Salvarezza (Ciência), Juan Cabandié (Meio Ambiente) e Tristán Bauer (Cultura). Todos os demissionários têm em comum a forte aliança com a vice-presidente Cristina Kirchner. Até o fechamento desta edição, nem Fernández nem Kirchner tinham se pronunciado sobre a instabilidade.
Segundo o jornal Clarín, a renúncia em massa ocorreu na esteira de uma tensa reunião entre presidente e vice, ocorrida na terça-feira, na Quinta de Olivos — a residência oficial do governo, localizada no subúrbio de Buenos Aires. Na tentativa de demonstrar capital político, a Casa Rosada garantiu que conta com o apoio dos governadores das províncias de La Rioja, San Juan, Tierra del Fuego, Tucumán, Neuquén e San Luis. Para hoje, movimentos sociais alinhados a Fernández convocaram uma marcha em apoio ao presidente, na Plaza de Mayo, em frente a Casa Rosada.
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Novos rumos
Para o cientista político Andres Gilio, diretor da empresa de consultoria Opina Argentina, a renúncia em massa na Casa Rosada se encaixa mais na definição de rumos do governo do que na disputa por espaços de poder. “Vemos uma tensão, sobretudo na esfera econômica. Há duas visões nesse sentido. A primeira, defendida por Fernández e por Guzmán, é marcada pela moderação nas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), no equilíbrio fiscal e nas políticas de estímulo aos investimentos”, disse ao Correio. “A segunda, abraçada por Cristina Kirchner, é a de que um acordo com o FMI precisa ser muito maios duro, capaz de permitir margens fiscais. A ex-presidente também advoga por uma política de redistribuição de renda — políticas mais expansivas, ainda que pesem riscos inflacionários.”
Gilio explicou que a saída de Eduardo “Wado” de Pedro se explica como uma estratégia de Cristina para condicionar os rumos políticos e econômicos do governo. “De certa forma, esse jogo de renúncias escancara dois projetos com matizes fortemente diferentes em relação a como encarar os dois anos de mandato restantes. Cristina não pretende se concentrar somente na mudança de nomes no gabinete. Ela deseja se cercar de executores fiéis à sua estratégia política”, avaliou.
Ainda segundo Gilio, a retirada do núcleo kirchnerista do poder deixa Fernández bastante prejudicado. “O governo ficará impossibilitado de reconstruir uma coalizão que lhe garanta o mínimo de governabilidade”, adverte. O analista político vê duas alternativas “muito perigosas” para o presidente. “Ou ele entra em um pavoroso nível de incerteza na governabilidade ou se rende diretamente a acata a visão política de Cristina. A ex-presidente está mais acostumada a esse jogo de confrontação e conta com respaldo em amplos setores da população.”
Carlos Fara — especialista argentino em opinião pública e comunicação de governo que participou de 140 campanhas eleitores na América Latina — não esconde a gravidade da crise em Buenos Aires. “É algo sem precedentes, o pior momento do governo de Fernández”, disse ao Correio. De acordo com ele, a renúncia de “Wado” foi uma maneira de forçar o presidente a pedir a renúncia de todo o gabinete para reordenar o governo, depois do fiasco de domingo. “O principal elemento aqui é Guzmán, criticado pela posição moderada. Os kirchneristas defendem que o ministro da Economia abandone a moderação e insufle o consumo popular, para reverter o resultado negativo nas primárias para as eleições legislativas”, comentou.
Fara reforça que Fernández sai bastante debilitado desse episódio e lembra que Cristina conta com apoio eleitoral de vários setores, o que lhe garante votos. “Existe o risco de a crise se deteriorar e de o presidente abrir diálogo com Cristina e com governadores. Nesse caso, Fernández perderia legitimidade”, analisou. Ele tem que, se Guzmán e o chefe de gabinete de Fernández, Santiago Cafiero, forem mantidos no cargo, haverá um efeito dominó, com novas renúncias. “Se o presidente não destituir os dois, Cristina poderá retirar seus funcionários e esvaziar o governo. Isso representaria uma crise político-institucional descomunal.”
» Debandada kirchnerista
Quem são os ministros de Alberto Fernández que apresentaram a renúncia:
Eduardo “Wado” de Pedro (Interior)
1- O demissionário ministro era uma das figuras mais importantes do governo de Alberto Fernández, além de mediador entre o presidente e a vice, Cristina Kirchner. Também funcionava como estrategista nacional e interlocutor com a oposição. Tinha excelente trânsito entre os empresários e os juízes.
Roberto Salvarezza (Ciência e Tecnologia)
2- Foi presidente do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet). Em 2017, foi candidato a deputado federal, pela província de Buenos Aires, depois de se afiliar à coalizão Unidad Ciudadana, de Cristina Kirchner.
Martín Soria (Justiça)
Ex-deputado federal pela província de Río Negro, foi bastante criticado por não fazer avançar a reforma do Judiciário. No governo de Alberto Fernández, buscava mudar a legislação do Ministério Público Federal, o que lhe permitiria substituir o procurador-geral. Fracassou no intento.
Juan Cabandié (Meio Ambiente)
3- Foi crucial para a reaproximação entre Fernández e Cristina Kirchner. Fez parte da organização política juvenil La Cámpora, fundada em 2006, de ampla orientação kirchnerista.
Tristán Bauer (Cultura)
4- Cineasta de formação e importante aliado de Cristina Kirchner, foi presidente da Radio y Televisión Argentina (RTA). Também atuou como diretor do Sistema Nacional
de Meios Públicos.
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