A relação entre o presidente da Argentina, Alberto Fernández, e a vice, Cristina Kirchner, estremeceu de vez, um dia depois de cinco ministros kirchneristas apresentarem suas renúncias à Casa Rosada. Por volta das 13h, Fernández enviou um recado ao gabinete da também líder do Senado. “Tenho escutado o meu povo. A arrogância e a prepotência não se aninham em mim. A gestão do governo continuará a desenvolver-se da maneira que eu considerar apropriada. Para isso fui eleito”, escreveu em seu perfil oficial no Twitter. Mais tarde, Alberto conversou com um jornalista do diário Página 12 e citou Cristina pela primeira vez: “Ela me conhece, sabe que tiram de mim qualquer coisa. Com pressões, não me obrigarão” — uma referência à estratégia do kirchnerismo de forçar mudanças no gabinete.
Seis horas depois da primeira manifestação de Fernández, Cristina rompeu o silêncio e publicou um extenso comunicado, no qual fez advertências ao presidente e pediu modificações no gabinete. “Estou convencida de que será impossível solucionar os problemas deixados pelo macrismo, de baixos salários, altíssima inflação, endividamento vertiginoso com credores privados e a volta do Fundo Monetário Internacional (FMI) com um empréstimo de US$ 44 bilhões votando no macrismo ou em suas ideias”, afirmou a vice, ao citar a filosofia política adotada pelo ex-presidente Mauricio Macri.
“Quando tomei a decisão — e o faço na primeira pessoa do singular, pois foi realmente assim — de propor a Alberto Fernández como candidato a presidente de todos os argentinos e argentinas, o fiz com a convicção de que era o melhor para a minha pátria. Apenas peço ao presidente que honre aquela decisão... Mas, acima de tudo, levando em conta também suas palavras e convicções, o que é mais importante do que tudo: que honre a vontade do povo argentino”, acrescentou Cristina. A vice classificou a derrota do oficialismo nas primárias para as eleições legislativas, no último domingo, como “uma catástrofe política”.
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Reacomodação
“Incêndios não podem ser apagados com gasolina”, alertou ao Correio Facundo Galván, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA), ao reconhecer o agravamento da crise. Segundo ele, a Argentina assiste a um “processo de reacomodação das negociações entre as facções peronistas que compõem a aliança de governo”. “Essas facções, sejam aquelas leais a Fernández, a Cristina ou a Sérgio Massa (presidente da Câmara dos Deputados), e os governadores provinciais estão envolvidos em uma negociação muito tensa. Cada passo dado ressoa muito forte”, explicou.
Até o fechamento desta edição, não estava claro de Fernández tinha aceitado, ou não, a renúncia de Eduardo “Wado” de Pedro, ministro do Interior e principal interlocutor com a oposição. Áudios vazados de conversas da deputada kirchnerista Fernanda Vallejos (veja foto) acrescentaram tensão ao ambiente político. “O áudio deixa entrever que a disputa entre as facções peronistas é real, não uma invenção da mídia ou da oposição. Há uma queixa concreta entre os setores peronistas sobre o que ocorre com o governo de Fernández”, disse Galván.
Por sua vez, Lucas Romero — cientista político e diretor da consultoria Synopsis (em Buenos Aires) — explicou à reportagem que a Argentina assiste a uma crise dentro da coalizão de governo, a qual teve origem no surgimento da candidatura de Fernández, em 2019. “Enquanto candidato, ele teve a legitimidade viciada pela forte assimetria de poder entre Cristina e o próprio Alberto, um dirigente sem poder territorial, sem popularidade e sem recursos políticos. Enquanto presidente, Fernández não tem obtido bons resultados de gestão, especialmente nos campos econômico e sanitário”, avaliou.
Segundo Romero, o kirchnerismo exige do presidente a reestruturação da equipe de governo. “Apesar de muito enfraquecido, Fernández resiste, pois deseja manter os funcionários de sua confiança. O conflito tem escalado, o resultado é incerto. No entanto, qualquer ruptura da coalizão do governo levaria a uma crise muito mais profunda, capaz de desembocar na interrupção do mandato presidencial”, advertiu.
» O vazamento de áudios explosivos
Dois áudios obtidos pelo jornal Clarín oferecem um vislumbre da gravidade da crise política na Argentina. A deputada kirchnerista Fernanda Vallejos (foto) conversa com um interlocutor chamado “Pedro” e não poupa críticas ao presidente Alberto Fernández. Não está claro se o Pedro em questão seria o ministro do Interior demissionário Eduardo “Wado” de Pedro. “O que vamos fazer? Vamos todos ficar nus, em frente à Casa Rosada, e dançamos um malambo para Alberto Fernández? Este governo tem que ser relançado. Já se foi, fracassou até aqui. (…) É preciso virar a página e começar um governo novo, como ocorreria em um governo de coalizão institucionalizada”, afirma a parlamentar. “O que está claro é que este governo já era. (…) Isto é um inquilino. A dona dos votos, a dona da legitimidade, do apoio popular, da base de sustentação deste governo é Cristina”, acrescenta, em alusão à vice-presidenta Cristina Krchner. Vallejos ataca Fernández por não escutar a mensagem das urnas e aceitar a renúncia dos ministros. “Vê-se que, além de cego, é surdo, pois jamais escutou nada, nem tampouco nada aprendeu com Néstor (Kirchner) nem com ninguém”, disse. Ante a enorme repercussão, Vallejos se desculpou. “Lamento ter ofendido colegas com minhas palavras e torno públicas as minhas desculpas pelo caso. Tenho certeza de que, em ambientes privados, como humanos que somos, todos tivemos explosões em nossas vidas, típicas do calor do momento, das quais devemos nos arrepender”, escreveu no Twitter.
» Pontos de vista
Por Lucas Romero
Perigo real à governabilidade
“A situação pode ser mais ou menos grave, se houver a ruptura da coalizão de governo ou se ela ficar unida. Se os atores que integram o oficialismo puderem processar a crise interna e chegarem a um acordo sobre a equipe de governo, poderemos ter garantidas determinadas condições de governabilidade. Se o kirchnerismo abandonar a coalizão, o presidente ficará em situação de extrema debilidade política para sustentar a governabilidade. Tudo isso desembocaria em um resultado eleitoral mais adverso em novembro.” Cientista político e diretor da Synopsis (em Buenos Aires)
Por Facundo Galván
Acordo mais provável
“Todas as coalizões são dotadas de certas características. Uma delas envolve a presença de sócios, que têm um objetivo comum e sustentam um gabinete comum. Se houver uma ruptura com o setor kirchnerista, deputados e senadores deixarão de apoiar o presidente, pois formam parte da facção kirchnerista. É um grupo muito poderoso, que conta com recursos organizacionais, tanto no Executivo quanto no Legislativo, e maneja os recursos financeiros. É mais factível um acordo entre as facções do que uma ruptura.” Professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)
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