Mais de um ano e meio depois do início da pandemia de covid-19, a Rússia vive seu pior momento na luta contra o coronavírus.
Atingiu neste sábado (16/10) pela primeira vez a marca de mil mortes pela doença em um único dia e é o quarto com maior número de contágios acumulados nas últimas quatro semanas, 663 mil.
O governo tem evitado tomar medidas de restrição à circulação de pessoas e atribui a nova onda de infecções à resistência dos russos à vacinação. No último dia 5 de outubro, Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, afirmou que o nível atual de imunização no país não é suficiente para fazer frente à agressividade das novas variantes de coronavírus.
Resistência à vacina
A Rússia foi um dos primeiros países a lançar um imunizante contra o coronavírus. Batizado de Sputnik V, foi desenvolvido pelo Instituto Gamaleya em parceria com o Ministério da Defesa e lançado ainda em dezembro de 2020.
Até o momento, contudo, pouco menos de um terço da população russa (31%) foi vacinada, conforme os dados do portal Our World in Data, da Universidade de Oxford.
O número de imunizados com a primeira e segunda doses é bem próximo, o que sugere que há um volume elevado de pessoas que não pretendem se vacinar. Em um levantamento realizado em agosto pelo Centro Levada, especializado em pesquisas de opinião pública, esse percentual era de 54%.
Ainda assim, o Kremlin até o momento descarta impor sanções àqueles que se recusarem a se vacinar. Segundo Peskov, esse tipo de medida vai contra a "natureza social" do Estado russo e, assim, não seria realista cogitá-las.
Em pronunciamento no último dia 11, o porta-voz disse que o que resta nesta situação é apelar à consciência dos cidadãos para que entendam que "não há outra forma de proteger suas vidas a não ser se vacinando".
Desconfiança generalizada
"Muitos não se vacinaram não porque sejam antivacinas, mas porque decidiram esperar", avalia a antropóloga Alexandra Arkhipova, pesquisadora do Instituto de Ciências Sociais da Academia Presidencial Russa de Economia Nacional e Administração Pública.
Em entrevista ao serviço russo da BBC, Arkhipova afirma que a decisão teria como pano de fundo uma desconfiança em relação à Medicina e à elite política do país, além de conselhos vindos dos médicos "de família".
"No período soviético, os pais eram obrigados a vacinar os filhos. A recusa acabava sendo uma forma de protesto e, por isso, em algumas famílias de intelectuais, por exemplo, esse tipo de comportamento era inclusive estimulado", acrescenta.
"Em paralelo, muita gente diz que não está na lista para se vacinar porque não confia na forma como a Sputnik V foi desenvolvida. As pessoas se sentem muito incomodadas com a falta de informações sobre como a vacina foi feita, seus efeitos colaterais, quantas pessoas ficaram doentes, quantas tiveram formas graves, quantas foram hospitalizadas, etc", completa Arkhipova.
A antropóloga diz que, ainda que muitos russos não confiem na medicina, costumam ouvir os médicos conhecidos, mas isto, paradoxalmente, não contribuiu para impulsionar a campanha de vacinação.
"Muitas pessoas foram dissuadidas pelos chamados 'médicos de família''', destaca.
Na Rússia, segundo ela, os protocolos de vacinação para pessoas com diferentes doenças pré-existentes não foram bem desenvolvidos, o que dificulta o trabalho dos profissionais de saúde.
"Acaba sendo intimidador para um médico assumir a responsabilidade de recomendar a vacinação. Muitas vezes eles não sabem exatamente como a imunização pode afetar uma doença pré-existente que o paciente tenha. Assim, acaba sendo mais fácil dizer: 'não se vacine'."
A pesquisadora pontua ainda que, nas entrevistas conduzidas em seus estudos, é elevado o número de pessoas que dizem desconfiar de médicos e profissionais com grande visibilidade porque eles podem mentir para a população sem que enfrentem nenhuma consequência por seus atos.
"Mentir não é algo normalmente punido na Rússia. Pela mesma razão, algumas pessoas confiam mais nas vacinas importadas porque acreditam que, caso os fabricantes da Pfizer mintam, por exemplo, vão sofrer as devidas repercussões."
Uma outra razão seria ainda um desconhecimento de muitos russos sobre a própria biologia.
"Muitas pessoas não entendem o que é um vírus, como ele entra no corpo, o que são anticorpos. Por isso, muita gente tem uma capacidade crítica reduzida para reagir a rumores", diz a antropóloga.
Na Rússia, assim como em muitos outros países, as notícias falsas e desinformação sobre as vacinas têm sido abundantes.
Até julho deste ano, a pesquisadora tinha reunido em uma base de dados 314 fake news diferentes sobre o coronavírus, das quais 83 estavam relacionadas às vacinas e haviam sido compartilhadas 2,6 milhões de vezes nas redes sociais.
Esse é outro fator que dificulta a tarefa de persuadir os russos sobre a importância de garantir a imunização contra a covid-19.
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