SUDÃO

Militares dão golpe de estado no Sudão e declaram estado de emergência

Militares tomam o poder, detêm o primeiro-ministro, dissolvem governo interino e declaram estado de emergência. Segundo golpe de Estado em dois anos e meio recebe forte condenação internacional. Washington suspende ajuda de US$ 700 milhões

Rodrigo Craveiro
postado em 26/10/2021 06:00
Manifestantes queimam pneus e improvisam barricada na 60ª Rua, em Cartum: revolta contra golpe e prisões de membros do governo -  (crédito: AFP)
Manifestantes queimam pneus e improvisam barricada na 60ª Rua, em Cartum: revolta contra golpe e prisões de membros do governo - (crédito: AFP)

Morador de Cartum, Khattab Hamad, 27 anos, acordou por volta das 4h30 de ontem (23h30 de domingo) com um telefonema de um amigo. “Ele me contou que havia um golpe em curso. Entrei na internet e conferi o noticiário. Meia hora depois, ela foi desativada. Então, fui até a rua e encontrei algumas pessoas que começavam a fazer bloqueios. Por volta das 7h, as ruas começaram a ficar cheias. Mas era como se estivéssemos no deserto sem um mapa”, relatou ao Correio o ativista de direitos digitais, por meio do WhatsApp.

Logo em seguida, o general sudanês Abdel Fattah al Burhan divulgou um comunicado por meio do qual confirmava a prisão do primeiro-ministro, Abdallah Hamdok, e de sua esposa, Muna Abdallah, além de vários ministros e de todos os membros civis do Conselho Soberano — a maior autoridade da transição. A comunidade internacional condenou a destituição do governo interino. Os Estados Unidos suspenderam a ajuda de US$ 700 milhões (cerca de R$ 3,8 bilhões) ao Sudão e exigiram a restituição de um governo civil.

“O governo de transição dirigido por civis deve ser restaurado imediatamente e representar a vontade do povo”, disse o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price. “À luz desses acontecimentos, estamos suspendendo a assistência por completo. Estamos ao lado do povo sudanês, o qual deixou clara a sua vontade de continuar com a transição para a democracia.” O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, também exigiu a “liberdade imediata” de Hamdok e o respeito à “carta constitucional”.

O Conselho de Segurança da ONU fará uma reunião de emergência, hoje, a pedido de Reino Unido, EUA, França, Noruega, Estônia e Irlanda, para debater o autogolpe de Al Burhan. A chilena Michelle Bachelet, alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, revelou o temor de um “desastre” na hipótese de “o Sudão regredir, após décadas de ditadura”. O país enfrenta o segundo golpe em 30 meses; em 11 de abril de 2019, o presidente Omar Al-Bashir foi deposto por militares, depois de quase 26 anos no poder.

“As forças armadas continuarão a completar a transição democrática até a entrega da liderança do país a um governo civil eleito”, afirmou Al Burhan no comunicado, após declarar estado de emergência. O general prometeu reescrever a Constituição sudanesa e designar novo corpo do Legislativo. Segundo o líder golpista, um “governo representativo independente e justo” assumiria o poder até as eleições de 2023. Simpatizantes de Hamdok marcharam em favor da democracia, aos gritos de “O povo é mais forte”. As forças do conselho do golpe militar dispararam contra os manifestantes perto do Aeroporto Internacional de Cartum. Até o fechamento desta edição, cinco pessoas tinham morrido e cerca de 80 ficaram feridas.

“Desobediência civil”

De acordo com a agência de notícias France-Presse, sindicatos, grupos ativistas da revolta de 2019 e movimentos pró-democracia encorajaram os sudaneses a aderirem à “desobediência civil” e a uma greve geral. Pouco depois da prisão de Hamdok, o gabinete do premiê pediu que os civis lançassem mão de “protestos contra o golpe”.

“Além do premiê, os líderes do golpe detiveram os ministros da Informação, do Indústria, das Telecomunicações e das Relações Exteriores; e Jaffar Hassan, porta-voz das Forças de Liberdade e Mudança (organização política que defendeu a queda de Bashir, em 2019)”, disse Hamad. De acordo com o ativista pró-democracia e empresário Alshiekh Ali, 31, as mortes ocorreram depois que os manifestantes tentaram capturar um quartel-general do Exército. “A situação é complicada, mas acredito que o povo rejeitará qualquer tentativa de impor um governo militar. As pessoas confiam em Hamdok para comandar a transição democrática”, disse. Ali contou que a interrupção das comunicações incentivou a disseminação de fake news.

Discreto e decisivo

O general Abdel Fatah al-Burhan desempenhou um papel discreto como comandante do Exército até emergir das sombras no dia seguinte à queda do ditador Omar Al-Bashir. Com longa carreira militar sob a tirania de Bashir, teve papéis de destaque no comando das forças terrestres, até que o tirano o nomeou inspetor-geral do Exército em fevereiro, dois meses antes de ser deposto. A mídia sudanesa e analistas afirmam que Burhan coordenou o envio de tropas sudanesas ao Iêmen, integradas a uma coalizão liderada pela Arábia Saudita, que desde 2015 luta contra os rebeldes houthis, aliados do Irã.

Após a destituição de Bashir, Burhan foi empossado como líder interino em 11 de abril de 2019 e, posteriormente, assumiu a presidência do órgão governamental responsável pela transição para a democracia. Burhan deu o golpe aproveitando as divisões entre as facções que lideravam a transição e que resultaram em protestos de grupos opostos dias atrás.

» Vozes de Cartum

A situação por aqui é muito ruim. Não se consegue locomover de carro por causa das barreiras erguidas pelos manifestantes pró-democracia. Só é possível se mover a pé. Muitas pessoas por aqui falam sobre dezenas de disparos na região leste de Cartoum. O Comitê de Médicos denunciou que o Exército forçou a suspensão dos trabalhos no principal banco de sangue da cidade.”
Khattab Hamad, 27 anos, pesquisador de mídias e ativista de direitos digitais

Ninguém pode dizer o que acontecerá nos próximos dias. As pessoas permanecem nas ruas, em busca de notícias de nosso primeiro-ministro. Todas concordaram em ignorar o golpe. No próximo sábado, haverá uma grande manifestação nacional. O Exército precisa de apoio político e local para montar um novo governo formado por civis.
Alshiekh Ali,31 anos, ativista pró-democracia e empresário

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