Na primeira entrevista coletiva desde que dissolveu o governo do Sudão e ordenou a detenção do primeiro-ministro Abdallah Hamdok, Abdel Fattah al Burhan assegurou que o golpe militar de segunda-feira foi uma medida para evitar uma guerra civil. Horas depois de o general afirmar que o premiê tinha sido preso para a “própria segurança”, fontes militares confirmaram que Hamdok foi levado para casa, ontem à noite, e que “foram tomadas medidas de segurança no perímetro de seu domicílio”. Não estava claro se ele foi libertado ou se cumpre prisão domiciliar. Al Burhan chegou a dizer que mantinha o chefe do governo deposto em sua residência e assegurou que ele “está em boa saúde”.
A comunidade internacional intensificou a pressão pela soltura do político, com novos apelos do Departamento de Estado norte-americano; do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres; da União Africana; e da União Europeia (UE). Guterres lamentou “uma epidemia de golpes de Estado” na África. Na segunda-feira, os EUA anunciaram a suspensão de uma ajuda de US$ 700 milhões (cerca de R$ 3,8 bilhões) para o Sudão. A UE ameaçou adotar a mesma medida.
O líder da tomada de poder prometeu que os assuntos do país “serão dirigidos por um governo tecnocrata independente, no qual pessoas de todas as classes sociais estarão representadas”. Enquanto Al Burhan saía das sombras para justificar a interrupção da transição política após quase 26 anos no poder, a multidão desafiava os golpistas com protestos e com uma “greve geral”.
Morador de Cartum, Khattab Hamad, 27 anos, ativista de direitos digitais, admitiu ao Correio que o Sudão assiste a uma desobediência civil. “Movimentar-se pela cidade é praticamente impossível. Pontes foram fechadas, e há muitos pontos de controle nas ruas, montados pelas Forças de Apoio Rápido (RSF, composta por membros da antiga milícia Janjaweed), pelo Exército e pela polícia”, relatou. “No próximo sábado, está prevista uma manifestação que deve reunir 1 milhão de sudaneses em defesa da democracia e pelo fim do golpe. Esperamos retornar a um governo civil, capaz de impulsionar a transição rumo a um regime democrático. Se fracassarmos nesse objetivo, a situação pode ficar pior do que aquela vista sob o comando de Omar Al-Bashir.”
Os sudaneses temem perder avanços obtidos desde a destituição de Al-Bashir e retornar a um governo comandado por militares, dois anos depois de uma revolução que custou 200 vidas. Ao decretar estado de emergência, Al Burhan praticamente passou a concentrar poderes absolutos e demitiu todos os 32 governadores estaduais. Durante as últimas 48 horas, a internet tem apresentado interrupções sucessivas, uma estratégia dos militares para dificultarem a comunicação entre ativistas pró-democracia.
Alternativa
Mesmo assim, manifestantes com várias bandeiras do país tomaram as ruas. Desde segunda-feira, 10 ativistas foram mortos em confrontos com as forças de segurança e pelo menos 50 ficaram feridos. Em nota, o escritório de Hamdok assegurou que não existe alternativa aos protestos, às greves e à desobediência civil. A agência de notícias France-Presse informou que, na noite de ontem, bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas contra os manifestantes.
Em sinal de protesto, três embaixadores do Sudão (na França, na Bélgica e na Suíça) desertaram, sob o argumento de que as representações diplomáticas “pertencem ao povo sudanês e à sua revolução” — menção ao levante que culminou na queda de Al-Bashir, em 11 de abril de 2019. Em entrevista ao Correio, Mohammed Elrashed, embaixador do Sudão em Brasília, disse que seu país enfrenta uma “situação extremamente difícil”. “Precisamos de todo o tipo de apoio de aliados regionais e da comunidade internacional”, afirmou. De acordo com o diplomata, a crise política, econômica e social exige uma solução concertada por esforços nacionais e internacionais. “Todas as partes precisam fazer concessões que reflitam o espírito de cooperação, a fim de construir um Estado democrático estável e seguro. A estabilidade no Sudão se reflete em toda a região”, acrescentou o embaixador, ao advertir sobre o risco de uma onda migratória na África.
» Uma nação em turbulência
Principais acontecimentos no Sudão desde o levante que encerrou três décadas da ditadura de Omar al-Bashir
Preço do pão
Em 19 de dezembro de 2018, centenas de sudaneses protestam em várias cidades depois da decisão do governo de triplicar o preço do pão. Em duas localidades, as sedes do partido no poder são incendiadas.
Al-Bashir destituído
Em 6 de abril de 2019, milhares de manifestantes sentam-se em frente ao QG do Exército em Cartum. Cinco dias depois, Omar Al-Bashir, que ascendeu ao poder em 1989 após um golpe apoiado por islamitas, é destituído e detido pelo Exército. Um “conselho militar de transição” se forma para substituir o ditador. Milhares de pessoas protestam e rejeitam um “golpe”.
Repressão sangrenta
Em 3 de junho, homens armados com roupas militares dispersam os manifestantes. Mais de cem pessoas são mortas. Uma primeira investigação, ordenada pelo conselho militar, determina que paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF) estão envolvidos no banho de sangue. Mais de 250 pessoas perdem a vida na repressão, de acordo com uma comissão médica aliada aos ativistas.
Acordo de transição
Em meados de julho, é adotado um sistema de divisão do poder entre militares e civis, com o objetivo de criar um Conselho Soberano que levará o país ao poder civil em três anos. Em agosto, o Conselho Soberano é formado, presidido pelo general Abdel Fattah al-Burhan. Abdallah Hamdok, ex-economista da ONU, torna-se primeiro-ministro.
Bashir condenado
Em 14 de dezembro, Bashir é condenado a dois anos de prisão por corrupção. No dia 22, é aberta uma investigação no Sudão sobre os crimes em Darfur contra o ex-presidente, acusado pelo Tribunal Penal Internacional de “genocídio”, “crimes de guerra” e “crimes contra a humanidade”. Em agosto de 2021, o Sudão e o TPI firmam um acordo de cooperação para entregá-lo à Corte de Haia.
Acordo de paz
Em 30 de junho de 2020, dezenas de milhares de pessoas saem às ruas para exigir a aplicação das reformas exigidas durante o levante. Em 3 de outubro, o governo e grupos rebeldes assinam, em Juba, no Sudão do Sul, um acordo de paz histórico que deve encerrar 17 anos de guerra.
“Estado de emergência econômica”
Em 11 de setembro, o governo decreta um “estado de emergência econômica”. O Sudão está imerso em uma grave crise econômica.
Instabilidade
Em 8 de fevereiro de 2021, o premiê revela novo governo, que inclui sete ministros dos grupos rebeldes ativos no antigo regime. Em 22 de junho, Abdallah Hamdok pede unidade entre políticos e militares.
Golpe de Estado
Em 17 de setembro, manifestantes bloqueiam o principal porto do país, em Porto Sudão (leste). Na última segunda-feira, os militares prendem a maioria dos líderes civis, incluindo Hamdok, em um “golpe de Estado”.
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