É mais do que solidariedade

Correio Braziliense
postado em 04/12/2021 00:01

Os alertas insistentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras instâncias do sistema multilateral sobre a nova onda da covid-19, causada pela variante ômicron do coronavírus, recolocam na pauta das relações internacionais o tema crucial da interdependência. Quando o avanço da vacinação parecia permitir o retorno a algum tipo de normalidade, ao menos em países que se adiantaram na aquisição e aplicação dos imunizantes, a pandemia se aproxima de completar dois anos dando sinais de que a emergência sanitária persiste — e persistirá por algum tempo mais.

Desde 2020, quando cientistas do mundo inteiro se lançaram ao esforço para desenvolver vacinas eficientes, os epidemiologistas repetem o mantra: não se trata de um "salve-se quem puder". A experiência prática indica que o avanço desigual da imunização, em um mundo como o de hoje, põe a perder a aparente "vantagem" de quem conduziu o processo como se se tratasse de uma corrida na qual o prêmio é de quem cruza primeiro a linha de chegada.

Não é por azar ou acidente que a Europa volta a impor restrições de circulação e contato social — e países como a Alemanha, até então com um histórico invejável no enfrentamento à pandemia, se veem às voltas com o cenário assustador dos hospitais lotados enquanto o ritmo de infecção se acelera em ritmo exponencial. Como não é acaso que a nova ameaça tenha sido identificada originalmente na África: no continente com as taxas mais baixas de vacinação, o vírus teve tempo e terreno favorável para "experimentar" mutações que o tornam agora novamente uma ameaça global.

De maneira análoga, volta à tona um debate que marcou o primeiro ano da pandemia: vencê-la é, por definição, um desafio que extrapola os poderes dos Estados nacionais e demanda gestão concertada no âmbito do sistema multilateral. Em outras palavras, investir na imunização nos países onde ela avança lentamente é mais do que um gesto de solidariedade. É estratégia de interesse comum.

Junto e misturado

De certa maneira, mas não apenas como metáfora ou analogia, a emergência sanitária da covid-19 se apresenta como outra vertente de uma dicotomia que tem marcado as disputas políticas em democracias com graus distintos de desenvolvimento. No mundo globalizado, até onde pode ir a noção de soberania nacional — e a partir de qual ponto se impõem compromissos entre os governos para a ação conjunta?

Há menos de um mês, líderes de dezenas de países reuniram-se na Escócia para a COP26, a conferência internacional sobre as mudanças climáticas. Sintomática, a ausência de governantes de países como China, Rússia e Brasil expôs, uma vez mais, a fragilidade de medidas que não envolvam a comunidade internacional. Recolocou na baila, igualmente, um conceito basilar para a diplomacia brasileira nas primeiras décadas do século: o da responsabilidade desigual e compartilhada de países ricos e pobres na solução de problemas com os da agenda ambiental.

Pandemia e aquecimento global, embora sigam dinâmicas próprias, são sintomas de uma mesma condição que permeia o estágio atual da civilização humana. Vivemos concentrados — ou mesmo amontoados — em grandes cidades. Paralelamente, a circulação de populações e mercadorias pelo globo se faz em ritmo incomparável com o observado, por exemplo, na pandemia da gripe espanhola, um século atrás.

Dos pontos de vista econômico e social, a globalização oferece oportunidades únicas, mas desafios igualmente inéditos.

A parte que te cabe

Fustiga desde já a curiosidade e a atenção dos observadores externos a projeção e profundidade que essa discussão poderá assumir na campanha eleitoral de 2022, no Brasil. Para ficar no exemplo mais recente, a urgência da crise climática teve impacto decisivo na virada política consumada na Alemanha. Mais do que o retorno da centro-esquerda ao governo, após 16 anos de predomínio da democracia-cristã, as eleições de setembro consolidaram a posição dos Verdes entre os principais partidos.

Política externa tem sido tema lateral nas disputas domésticas — e não apenas em países com presença mais discreta no tabuleiro da geopolítica global. Por aqui, quando aparece, costuma ser na forma de frases de efeito destinadas a desacreditar um adversário pela associação a regimes ou personagens externos sobre os quais o grosso do eleitorado tem impressão superficial e estereotipada.

No confronto que se desenha entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula, o contexto da pandemia, a depender do seu desenvolvimento, poderá representar uma oportunidade para a discussão sobre multilateralismo ou autoafirmação como opções para a inserção internacional do país. É a parte que nos cabe.

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