O novo ano apita na curva e antecipa um período especialmente desafiador para a diplomacia brasileira, justamente quando as atenções estarão, crescentemente, voltadas para a eleição presidencial de outubro. Vamos começar 2022 com o país reassumindo uma cadeira não permanente no Conselho de Segurança (CS), a instância máxima das Nações Unidas. O retorno coincide com a presença, no Planalto, de um presidente que adotou como linhas mestras de política externa o realinhamento com os Estados Unidos — notadamente, enquanto era Donald Trump quem ocupava a Casa Branca — e o distanciamento em relação ao sistema multilateral.
Os primeiros três anos de mandato de Jair Bolsonaro foram marcados pela acentuação das fricções entre EUA, China e Rússia — em frentes tão diversas quanto comércio mundial, combate à pandemia e a corrida por novas gerações de armas nucleares. Desde março último sob comando do chanceler Carlos França, de perfil menos ostensivamente "bolsonarista" que o do antecessor, Ernesto Araújo, o Itamaraty se verá no centro de decisões da comunidade internacional com um ambiente de polarização cada vez mais nítida entre as cinco potências que ocupam cadeira permanente no CS da ONU: além de EUA, China e Rússia, Reino Unido e França, habitualmente mais próximos de Washington.
O galho de cada macaco
O cenário desenhado para 2022 pôde ser antevisto na organização e condução de um evento que passou quase despercebido pelo noticiário, mas que expressa a orientação impressa à política externa americana sob a presidência de Joe Biden, a partir de janeiro. Ainda por via remota, em atenção à reemergência da covid 19, a Casa Branca reuniu anteontem um grupo de países escolhidos para uma "cúpula da democracia".
As listas de convidados e excluídos, à parte as opiniões (naturalmente divergentes) sobre as credenciais democráticas de uns e outros, evidenciam o movimento de Biden no sentido de articular um bloco. O critério escolhido — o da democracia — deu base para que ficassem de fora China e Rússia, para ficar nos dois "alvos" mais notórios. É com o regime comunista de Pequim e com o neoczarismo de Vladimir Putin que Washington trata de demarcar campos. O lema para os próximos três anos, na Casa Branca, parece ser: cada um procura a própria turma.
Com que roupa?
Para o Planalto e o Itamaraty, por cima e para além das exigências que a agenda doméstica/eleitoral coloca diante de Bolsonaro, a presença do Brasil no Conselho de Segurança torna incontornável a escolha de caminhos para a inserção global. Iniciada no período FHC e aprofundada nos governos de Lula e Dilma, a projeção do país no sistema multilateral seguiu, até 2016, um rumo que se cruza, agora, com os movimentos no tabuleiro geopolítico.
Em resumo, será preciso escolher um figurino para o baile. Nos anos Lula, especialmente, a diplomacia brasileira perseguiu um caminho descrito pelo então chanceler, Celso Amorim, como feito de "círculos concêntricos". Na esfera mais próxima, a integração da América Latina, centrada no Mercosul e nas hoje adormecidas Unasul e Celac. A estratégia sul-sul se desdobrou no Forum Ibas, com Índia e África do Sul, sobre a base da articulação entre democracias populosas do mundo em desenvolvimento. O Ibas acabou assimilado pelo Brics, composto com Rússia e China no espírito de costurar um pólo de economias emergentes.
Se a opção mais recente de política externa foi privilegiar as iniciativas bilaterais, em especial no comércio, o assento obtido no CS da ONU recoloca na pauta o lugar do país no sistema multilateral, questionado pelo governo no combate à pandemia.
Pôquer nuclear
As cartas estão sobre a mesa, desde já, na retomada das conversações para resgate do acordo nuclear fechado em 2015 entre um grupo de potências e o Irã, mas abandonado pelos EUA em 2018, por decisão de Trump, e desde então praticamente em coma. O tratado buscava "congelar" o programa atômico do regime islâmico e impedi-lo de obter a bomba.
A retomada das medidas mútuas de confiança entre os dois lados é negociada fora do terreno do Conselho de Segurança, mas ainda assim sob o guarda-chuva da ONU — os emissários dos sete países reúnem-se em Viena, sede da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). O CS, de qualquer maneira, é o organismo qualificado para chancelar o acordo, e não por acaso o consórcio das seis potências ganhou o nome de "grupo P5 1": refere-se aos cinco membros permanentes do Conselho mais a Alemanha.
Como detentores de poder de veto no organismo, o consenso entre os "cinco" é indispensável para que qualquer fórmula possa prosperar e ser oficialmente adotada pelas Nações Unidas.
Fronteira quente
O menu para 2022 no CS pode incluir outro imbroglio pontual que exemplifica a reacomodação entre os "grandes" na nova ordem multipolar ainda em consolidação. O ano termina com a tensão em alta na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, há quase uma década às voltas com um conflito entre o governo de Kiev, pró-ocidental, e separatistas pró-Moscou. Foi no contexto da guerra civil, hoje em banho-maria, que Vladimir Putin anexou a península da Crimeia, em 2013 — sob protestos dos EUA, da União Europeia e aliados.
O Kremlin concentra tropas e material bélico no extremo ocidental de seu território de modo a enviar um recado à Otan, aliança militar euro-americana criada nos desobramentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como contraponto à hoje extinta União Soviética. Naquela altura, quando irrompia a Guerra Fria entre Washington e Moscou, a fronteira entre a Otan e o Pacto de Varsóvia, braço militar do bloco socialista, passava pela Europa Central e tinha como marcos visíveis o Muro de Berlim e a Cortina de Ferro.
Passadas três décadas desde o fim do bloco socialista europeu — e da própria URSS —, Putin traça sua "linha vermelha" às portas da própria Rússia. E adverte sobre os riscos de a Otan seguir em frente na expansão para o Leste.
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