Buenos Aires sediou, na quinta e sexta-feira, em uma quase "semiclandestinidade" quanto à cobertura do noticiário, um encontro de cúpula destinado a relançar a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Fundada no fim de 2011, como uma espécie de contraponto à Organização dos Estados Americanos (OEA), criada e hegemonizada pelos EUA, a organização sofreu os baques seguidos do desligamento do Brasil, sob o governo Bolsonaro, e da pandemia, que obrigou o presidente Andrés Manuel Lopez Obrador a estender por mais um ano o comando rotativo mexicano.
No Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina, o ministro Santiago Cafiero recebeu os colegas dos demais 30 países que se dispuseram a comparecer presencialmente — os demais participaram por videoconferência. Em operação costurada desde setembro por AMLO, como é conhecido o presidente mexicano, pelas iniciais do nome, a presidência rotativa foi passada ao argentino Alberto Fernández, para o período 2022-2023.
O relançamento da Celac se faz na expectativa pelos resultados das eleições presidenciais em dois países onde se desenha a possibilidade de um reforço estratégico para a esquerda latino-americana. Em maio será a vez da Colômbia, onde o ex-guerrilheiro Gustavo Petro se perfila como opção para brecar a reeleição do direitista Iván Duque. Em outubro, será a vez de Lula confirmar o atual favoritismo nas pesquisas contra Jair Bolsonaro, ou mesmo contra o ex-juiz Sergio Moro, que procura espaço para crescer como candidato da chamada "terceira via".
Paso doble
Na ausência do Brasil, que concentra no Mercosul a atuação no cenário regional, a Argentina de Fernández trata de ocupar o vácuo aberto em especial na vizinhança sul-americana. À espera do possível retorno de Lula ao Planalto, o presidente argentino aposta as fichas na diplomacia como parte da recuperação do terreno político perdido, no ano passado, com a derrota sofrida nas eleições legislativas.
A direção rotativa da Celac se soma à presidência, também temporária, do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Assim, em dois passos costurados com a elegância atrevida do tango, a Casa Rosada se cacifa para jogar papel essencial em processos como a difícil ratificação do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia.
Samba paulistano
No que diz respeito ao Brasil, para a vizinhança sul-americana e para a integração regional mais ampla, o desfecho da eleição de outubro pode abrir caminho não apenas para o retorno à Celac do país com maior peso específico — tanto econômico quanto político-diplomático. Se fizer a nova inscrição, como o boêmio da seresta, o país voltará pelas mãos de um dos principais artífices da organização.
Foi ainda em 2008, na metade do segundo mandato como presidente, que Lula reuniu na Costa do Sauípe, no litoral da Bahia, a I Cúpula de Estados Latino-Americanos e do Caribe. Lá, em parceria com o líder bolivariano da Venezuela, Hugo Chávez, e com o cubano Raúl Castro, irmão e sucessor de Fidel, articulou a criação de um mecanismo regional alternativo à OEA. Com o reforço da argentina Cristina Kirchner e do equatoriano Rafael Correa, a Celac foi lançada em nova cúpula, no México, em 2010, e formalmente estabelecida em Caracas, no ano seguinte.
Caso conquiste o terceiro mandato no Planalto, o ex-líder sindical poderá entrar em 2023 recordando o refrão de um velho samba de Adoniran Barbosa, muito popular no ABC paulista: "Ói nóis aqui traveis".
Tem que rezar
Seja qual for o resultado das urnas, o Itamaraty acompanha de perto, neste ano, o desfecho de outro processo político de importância capital em um país onde o protagonismo assumido nas últimas décadas tornou o Brasil um parceiro externo fundamental. Há dois anos sem um Parlamento em funções, o Haiti é governado desde julho pelo primeiro-ministro Ariel Henry, que assumiu o comando após o assassinato do presidente Jovenel Moise, em julho último.
Henry, que procura articular uma comissão encarregada de organizar eleições legislativas ainda em 2022, foi ele próprio alvo de atentado no dia de ano-novo, em Gonaives, onde participava de uma comemoração pela independência — conquistada em 1804, fruto de uma rebelião de escravizados, feito inédito e pioneiro nas Américas.
Desde que aceitou chefiar a Missão de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti (Minustah), em 2004, após o golpe militar que depôs o presidente Jean-Bertrand Aristide, o Brasil se envolveu diretamente com a instabilidade política crônica da ilha caribenha, um dos países mais pobres do mundo. Hoje, abriga mais de 100 mil imigrantes haitianos e, até por isso, tem interesse próprio na pacificação.
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