É da cadeira rotativa que ocupa desde o início do ano no Conselho de Segurança (CS), a instância máxima da ONU, que a diplomacia brasileira acompanha o desenrolar do impasse político-militar na Ucrânia. O jogo de pressões e contrapressões entre a Rússia de Vladimir Putin e os EUA de Joe Biden — com os respectivos aliados — repete padrões da Guerra Fria em novos acordes.
Embora não compartilhe do poder de veto no CS, privilégio dos cinco membros com assento permanente (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China), o Brasil pode ser chamado a se manifestar em votações que tendem a colocar em confrontos dois blocos que se cristalizam. Pela ótica de Brasília, um embate sobre a Ucrânia na cúpula da ONU obriga o Planalto e o Itamaraty a escolher entre cruz e espada — em ano eleitoral, com o presidente buscando a reeleição.
Qual dos dois?
A escalada de tensão na Ucrânia retrata um novo momento na redefinição da ordem internacional. Opõe diretamente a Rússia, herdeira da União Soviética, à Otan, a aliança militar entre os EUA e países europeus. Desde o fim da URSS, em 1991, o bloco ocidental avançou da fronteira interalemã para as portas do território russo. O novo czar do Kremlin, Vladimir Putin, riscou na Ucrânia a "linha vermelha" para a expansão da Otan.
O mandato brasileiro no CS será cumprido no último ano do governo Bolsonaro e no primeiro ano do próximo — seja do presidente reeleito, seja de um novo. Desde a posse, em 2019, o capitão colocou em marcha uma guinada na política externa, em direção a um alinhamento preferencial com Washington. Mas não "cancelou", no sentido da linguagem das redes sociais, as relações com o Brics, polo geopolítico que tem China e Rússia na proa.
É na perspectiva do acirramento das tensões e divisões entre esses dois blocos que a diplomacia brasileira terá de navegar nos dois anos como membro do Conselho de Segurança.
Deixa disso
A movimentação da semana que termina nos centros nervosos da Europa Ocidental permite entrever oportunidades de manobra para quem busca atalhos para se equilibrar no cenário. O novo chanceler (chefe de governo) da Alemanha, Olaf Scholz, e o presidente da França, Emmanuel Macron, que disputa o segundo mandato em meados do ano, coordenaram ações diplomáticas destinadas a preservar canais de diálogo com Moscou.
A famosa "turma do deixa disso".
Interesses próprios e imediatos à parte, os dois governantes recompõem a parceria que, desde o pós-Segunda Guerra, conduz o processo de integração da Europa. Em Berlim e Paris, entram nos cálculos as relações econômicas com a Rússia, em especial na importação de gás. A ameaça de Washington de impor sanções a Moscou incluiria um novo gasoduto cuja construção custou US$ 11 bilhões. O capital alemão responde pela maior parte dos investimentos.
Jogo duplo
No pôquer da Ucrânia, Putin joga a cartada energética exibindo como garantia acordos de cooperação estratégica em progressivo desdobramento com a China. Entre os mais recentes, os relacionados ao fornecimento de gás russo para a impetuosa expansão industrial chinesa. Na linguagem do carteado: o Ocidente ameaça Moscou com sanções ao bilionário negócio do gás; Moscou assiste à alta dos combustíveis no mercado europeu de commodities, dá de ombros e olha para o Oriente.
Uma vez KGB...
Diplomatas familiarizados com a dinâmica política doméstica da Rússia pós-soviética costumam ressaltar, em entrevistas ou em conversas reservadas, a importância de compreender a trajetória e a formação do atual presidente. Vladimir Putin domina o cenário desde o primeiro dia do ano 2000, quando sucedeu Boris Yeltsin, o primeiro do período que se seguiu ao fim da URSS.
Na ocasião, era primeiro-ministro de Yelstin, que renunciou na véspera de ano-novo. Imediatamente antes, tinha chefiado o Serviço Federal de Segurança (FSB), sucedâneo da famosa KGB, agência de espionagem e polícia política do regime soviético. No currículo do hoje presidente consta uma passagem entre 1985 e 1990 em Dresden, na antiga Alemanha Oriental (comunista). De lá, assistiu à queda do Muro de Berlim, ao esfacelamento do regime e à reunificação do país nos marcos da Alemanha Ocidental (capitalista).
Não apenas Putin conhece de perto os laços econômicos russo-alemães, que vêm da política de distensão iniciada nos anos 70 pelo chanceler social-democrata Willy Brandt. O novo czar instalado no Kremlin enxerga os desdobramentos desses laços na política doméstica alemã — e não titubeia na hora de aproveitá-los.
Atravessou o sinal
Em Berlim, a escalada de tensão na Europa Oriental teve repercussão quase imediata nas relações entre as forças que compõem a inédita coalizão de governo. Scholz, o atual chanceler, do Partido Social Democrata (SPD), entrou em cena para afirmar claramente o interesse da Alemanha em evitar um esgarçamento com Moscou. A titular das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, dos Verdes, pôs a ênfase na agenda de direitos humanos e falou grosso com a Rússia.
No jargão político alemão, o SPD tem a cor vermelha e os ecologistas, naturalmente, a verde. A aliança de governo, que ganha o nome de "sinal de trânsito", tem ainda os liberal-democratas, identificados com o amarelo. Partidários históricos do alinhamento estratégico com Washington, no âmbito da Otan, aguardam discretamente os passos de Scholz, prontos para acender o sinal amarelo em caso de necessidade.
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