Mais do que a abertura das Olimpíadas de Inverno, roubou a cena em Pequim o encontro mantido entre o presidente chinês, Xi Jinping, e o colega russo, Vladimir Putin — o primeiro governante estrangeiro a ser recebido por Xi nos dois anos de pandemia. O momento escolhido e o teor do longo comunicado conjunto divulgado na capital chinesa se sobrepõem para carregar as tintas de um movimento mais evidente a cada passo: consolida-se um bloco econômico, político-diplomático e militar com o propósito declarado de se opor aos EUA e seus aliados.
O texto firmado em Pequim condena sem meias-palavras a expansão da Otan — a aliança de defesa entre EUA e parceiros europeus — para o leste, até as portas da Rússia. Não menciona explicitamente a crise em fogo alto na Ucrânia, que se faz presente na declaração com a referência ao efeito alegado pelo Kremlin para concentrar 100 mil efetivos e armamento pesado na fronteira. No que diz respeito à China, os dois governantes reafirmam a soberania do regime comunista sobre Taiwan, a ilha cujo governo se proclama autônomo e conta com a proteção de Washington.
Segundo tempo
Até na linguagem escolhida (a dedo) pelos chanceleres, o comunicado invoca o fantasma do conflito que opôs os EUA e a extinta União Soviética nas quatro décadas que se seguiram à Segunda Guerra (1939-1945), na qual foram aliados contra a Alemanha nazista. Putin e Xi acusam a Otan de cultivar a "mentalidade da Guerra Fria" e empurrar a comunidade internacional para uma espécie de "segundo tempo" da ordem mundial bipolar — ao fim de um intervalo em que Washington flertou com a supremacia em um sistema unipolar.
Na prática, o encontro de Pequim configura a formação de uma contramola, de efeito semelhante ao provocado na velha Guerra Fria pelo Pacto de Varsóvia, réplica do bloco soviético à fundação da Otan. Com a diferença de que, ali, se tratava de uma aliança militar entre a URSS os regimes socialistas do Leste Europeu, com presença ativa do Exército Vermelho na fronteira interalemã — uma relação espelhada à mantida entre os os EUA e parceiros europeus. Agora, porém, Moscou se alia a uma potência econômica emergente, que aperta o passo para exercer peso diplomático e militar proporcional.
Outro patamar
Foi o próprio Putin quem fez questão de classificar o novo patamar das relações bilaterais como "sem precedentes", "superior a qualquer aliança" costurada pela URSS durante a disputa com os EUA. O comunicado conjunto celebra uma "amizade sem limites nem áreas 'proibidas' para cooperação". O espectro dos planos analisados em Pequim abrange áreas como defesa e coordenação estratégica, mudanças climáticas e exploração do espaço, inteligência artificial e internet.
Especialmente significativo, e de interesse imediato no tira-teima com Washington e a Otan, é o acordo para construção de um gasoduto e fornecimento de gás russo para a China por 30 anos. Trata-se de resposta prévia à imposição de sanções americanas como represália ao Kremlin, no âmbito da crise na Ucrânia. A Rússia tem na Alemanha um dos principais clientes no comércio de energia, um negócio que inclui o recém-concluído gasoduto Nordstream 2, projeto de 10 bilhões de euros bancado em boa parte por capital alemão.
Paciência milenar
Da perspectiva chinesa, o deslocamento na direção de Moscou assinala uma nova etapa no longo processo de recomposição daquele que por muitos séculos se viu como o "império do meio". Nascido em 1949, como a Otan, o regime comunista chinês ensaiou uma aliança "natural" com a URSS, nos primeiros anos, mas as relações esbarraram nas desconfianças — essas sim naturais, sem aspas — entre dois países continentais. Na entrada dos anos 1970, em pleno caos da Revolução Cultural, Mao Tsé-tung recebeu Richard Nixon em Pequim.
O caminho trilhado pelo "Grande Timoneiro", comparável na diplomacia à Longa Marcha da guerra civil, nos anos 1930, foi concluído pelo sucessor, Deng Xiaoping. Na década de 1980, a China formou com os EUA um par constante em questões como os conflitos armados regionais em que a Casa Branca e o Kremlin se enfrentavam "por procuração". Paralelamente, a abertura econômica ao capital estrangeiro fez dos dólares americanos a fonte principal de financiamento para as reformas que fizeram da China uma locomotiva global.
Depois de humilhado pelo Reino Unido e invadido pelo Japão, o velho império vislumbra um tempo no qual entra definitivamente para o centro do equilíbrio mundial.
Mão na cumbuca
Para a diplomacia brasileira, as ondas de choque dessa geopolítica triangular começam a se fazer sentir na agenda do Conselho de Segurança da ONU, onde o país ocupa uma cadeira não permanente desde o início do ano. Nessa condição, Jair Bolsonaro já escuta cobranças de Washington para que adote uma "posição firme" sobre a Ucrânia na visita planejada para este mês à Rússia.
O presidente deve desembarcar em Moscou na outra segunda-feira e tem encontro marcado com Vladimir Putin. Parece pouco provável que as tensões com a Otan tenham lugar de destaque na pauta, mas serão tema incontornável com a imprensa. Justamente por ter de tomar posições sobre o imbróglio no Conselho, qualquer palavra em falso diante dos microfones, em Moscou, traz o risco de desagradar a um dos dois lados — ou a ambos.
Na comparação feita por um diplomata europeu familiarizado há anos com a política externa brasileira, Bolsonaro pode encontrar conselho no ditado segundo o qual "macaco velho não põe a mão na cumbuca".
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