Igreja

Vitor, Melquíades e Gelásio: quem foram os únicos papas africanos da Igreja

Apesar da longa tradição de papas europeus, três importantes bispos de Roma vieram do norte da África

BBC
Edison Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
postado em 08/02/2022 11:14
 (crédito:  Getty Images)
(crédito: Getty Images)

Apesar da longa tradição de papas europeus, o trono de Roma já foi ocupado por religiosos de origem africana. Três vezes apenas — e todas até o século 5°. Em comum, Vitor, Melquíades e Gelásio tinham a origem no norte da África, em localidades que integraram o império romano. E os três acabaram depois sendo considerados santos.

Vale ressaltar que, nos primeiros séculos da chamada era cristã, o próprio papel do bispo de Roma como papa era algo questionável. E esses três religiosos tiveram sua dose de influência para que o cargo se tornasse reconhecido como acima dos demais bispos católicos: o primeiro oficializou o latim, língua de Roma; o segundo viveu o processo de legalização do cristianismo pelo império; o terceiro afirmou a primazia do bispado romano sobre os demais.

Pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros lembra que, ao se referir a essa época, tecnicamente não se fala em "papado", mas sim em "bispos de Roma". "O título de papa era dado, inclusive, a bispos de outras igrejas", comenta ela.

Contudo, quando a igreja sediada em Roma assumiu o papel de Santa Sé, sede universal do catolicismo, todos aqueles que haviam ocupado o cargo historicamente foram reconhecidos como papas na linha cronológica da história da Igreja.

"Nesses primeiros tempos, o papa era, como ainda hoje o é, o bispo de Roma. Era escolhido por aclamação entre os cristãos. Vivíamos os primeiros tempos do catolicismo. Depois é que vieram os processos mais rigorosos de escolha dos papas", afirma o pesquisador e estudioso da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.

"A base para o conclave [processo de eleição de um papa] da forma que o conhecemos hoje foi estabelecida pelo papa Gregório 10 por meio da constituição apostólica Ubi Periculum, no século 13", explica o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

A explicação para papas africanos neste período está na importância que o norte do continente tinha para o cristianismo da época. "Nesses primeiros séculos, a Igreja vivia um momento de destaque nessas áreas romanas da África", acrescenta Maerki.

Mais especificamente, a região onde hoje é a Tunísia. "Dois importantes pais da Igreja saem dali: Tertuliano e Cipriano", diz a vaticanista Medeiros, elencando nomes fundamentais dentre os primeiros teóricos do cristianismo.

"Nos escritos antigos, o lugar aparece como palco de perseguições e martírios. Ou seja: um lugar de forte tradição cristã, por causa também da influência romana, já que a região esteve sob domínio do império do ocidente até o ano de 429. A coisa vai mudar depois da invasão muçulmana no século 7°.

Vitor, o primeiro papa africano

Papa Vitor, em ilustração de domínio público, de autoria desconhecida, publicada pela primeira vez em 1842
Domínio público
Papa Vitor, que era nascido na Tunísia, em ilustração de domínio público, de autoria desconhecida, publicada pela primeira vez em 1842

Vitor, o 14° papa da história da Igreja Católica, provavelmente viveu entre os anos de 155 e 199, tendo sido bispo de Roma em sua última década de vida. Ele nasceu na província romana da Tunísia e, como salienta Maerki, "tinha uma influência latina, romana, muito forte".

Seu pontificado foi marcado por algumas modernizações no cristianismo, sobretudo na liturgia. A começar pelo idioma. "Ele estabeleceu que as missas deveriam ser celebradas em latim, não mais em grego, como era o costume na época", aponta Maerki.

Essa mudança favorecia a inserção cristã no meio romano, contribuindo para a consolidação de uma ocidentalização da religião.

Ele também facilitou a prática do batismo. "Estabeleceu que qualquer água, não necessariamente a água benta, poderia ser utilizada [no sacramento]", diz o hagiólogo. "Isso, obviamente, para facilitar o batismo, para que ele ocorresse de maneira mais rápida e pudesse ser realizado para muitas pessoas."

"Isso facilitou de fato a aceleração do processo de batismo de muitos fiéis recém-convertidos", ressalta. "O cristianismo dependia, para se expandir, de converter fiéis. A simplificação do procedimento foi um grande avanço, portanto."

Outra mudança foi a celebração da Páscoa. Dissociando-a completa e definitivamente da Páscoa judaica, Vitor determinou que a festa ocorresse sempre em um domingo, "para marcar a ressurreição de Cristo".

"Isto é um elemento de latinização, de romanização do judaísmo. Vejo como uma releitura da Páscoa judaica, de uma tradição judaica agora adaptada para a fé cristã", analisa Maerki. "A partir de então, para os cristãos, a Páscoa deixa de ser 'uma ideia de passagem' e se torna a própria ressurreição de Cristo."

Nesse mesmo sentido, foi ele quem oficializou o domingo como dia a ser respeitado pelos cristãos, em oposição ao sábado dos judeus.

Muitas dessas mudanças, embora decretadas e adotadas pelo papa Vitor, só viriam a ser confirmadas muito tempo depois, no primeiro Concílio de Niceia — ocorrido em 325. "O pontificado dele foi marcado por muitas controvérsias e é claro que ele deve ter tido muitos bispos opositores de suas ideias. Contudo, ele teve pulso firme para estabelecer algumas mudanças e mudar costumes já enraizados, vamos dizer assim, na Igreja", diz Maerki.

Vitor também combateu algumas doutrinas cristãs discrepantes que começavam a ganhar força, as chamadas heresias. Uma delas era a tese do adocionismo, que defendia que Jesus não seria filho legítimo de Deus, mas sim um homem tão puro que foi adotado por Deus como seu filho — por conta de ter sido um homem acima dos demais.

Não há comprovações que não a tradição, mas conta-se que Vitor morreu martirizado, depois de ter sido perseguido pelo imperador romano Septímio Severo. "Assim, seguia o padrão desses primeiro séculos: os papas eram martirizados e essa era uma prerrogativa para se tornarem santos e acederem às honras dos altares", pontua Maerki.

Melquíades, o primeiro papa da paz

Trigésimo-segundo papa da história da Igreja, Melquíades viveu provavelmente entre 270 e 314. Sabe-se que era africano, também do norte do continente, muito provavelmente da região onde hoje é a Tunísia — mas não há documentação precisa a respeito.

Papa Melquíades, em ilustração de domínio público, de autoria desconhecida
Domínio Público
Há consenso entre os historiadores que Melquíades era de etnia berbere, ou seja, de um povo norte-africano com raízes linguísticas afro-asiáticas

"Sabemos pouco sobre sua figura histórica, mas é certo que Melquíades era filho de pais africanos que imigraram para a Espanha e que ele sofreu com a perseguição de Diocleciano e Maximiano. Provavelmente era natural do norte da África", diz Maerki. "Curiosamente, é recordado como mártir, embora tenha morrido de causas naturais, isso por causa do grande sofrimento e perseguição a que esteve sujeito durante sua vida."

"Sabe-se que ele era africano por nascimento, mas, vivia em Roma quando escolhido bispo de Roma", afirma Lira. "Então, ele já vivia na Europa nessa época, pois, os primeiros papas eram da Igreja local de Roma, diferentemente do que ocorreu com o passar dos tempos."

Formou-se consenso entre os historiadores que ele era de etnia berbere, ou seja, de um povo norte-africano com raízes linguísticas afro-asiáticas. Maerki lembra que o historiador José Antonio Álvares Baena, do século 18, o apresenta como natural da atual Madri. "No entanto, a maioria das fontes biográficas diz que ele era berbere, do norte da África", completa o pesquisador. "E ele também era cidadão romano."

Aspecto importante é que Melquíades foi o papa justamente da transição entre um período de perseguição aos cristãos para a fase em que Roma passou a aceitar o cristianismo — foi durante seu pontificado que, em um gesto de habilidade política frente a um império já em processo de esfacelamento, que os imperadores Constantino e Licínio promulgaram o Édito de Milão, em 313, acabando oficialmente com a perseguição religiosa.

Seu sucessor, papa Silvestre, herdaria um período de cristianismo legalizado, portanto.

"O pontificado de Melquíades foi rápido e não se sabe muito sobre ele. No entanto, foi nesse período que se chegava a um acordo no sentido que fosse firmado o Édito de Milão, garantindo a liberdade religiosa aos cristãos e a restauração das propriedades eclesiásticas", pontua o hagiólogo Lira.

"Era o primeiro passo para o reconhecimento da Igreja Católica pelo Império Romano", acrescenta ele.

"Ele foi o papa que viu, por primeiro, a fase da 'paz da Igreja', ou seja, quando Constantino transformou o cristianismo em religião legal", acrescenta a pesquisadora Medeiros. "Ele foi o primeiro a gozar, por exemplo, da restituição dos bens da Igreja, confiscados pelos imperadores anteriores, que perseguiam cristãos."

A vaticanista cita o Liber Pontificalis, livro que biografava os papas da antiguidade, para lembrar que Melquíades foi o bispo de Roma que proibiu os cristãos de jejuarem aos domingos e às quintas-feiras. "Isso para contrapor à prática do jejum pagão, que ocorria nesses dias", frisa ela.

Além de procurar se contrapor aos pagãos, ele também teve um papel incisivo na perseguição às heresias — com destaque para os donatistas, que defendiam que os pecadores não fossem perdoados; e os maniqueístas, que classificavam a matéria como intrinsecamente má, em oposição ao espírito intrinsecamente bom.

De acordo com Lira, um dos pontos do pontificado de Melquíades foi o início do martirológio, a compilação de relatos acerca dos mártires, "importante referência da hagiologia até hoje". "São pequenos resumos sobre o mártir e, depois, também não-mártires que foram elevados às honras dos altares".

"A aproximação da Igreja Católica com Roma será sempre destacada quando lembramos o pontificado dele mas, pessoalmente, considero seu maior legado o martirológio, incluído entre os livros utilizados nas celebrações litúrgicas e de suma e real importância para a hagiologia", acrescenta Lira.

Gelásio, para quem papa tinha de ser o bispo de Roma

Papa Gelásio em ilustração de domínio público, de autoria desconhecida
Domínio público
Gelásio "é o papa que colocou Roma em destaque, o bispo de Roma em destaque. E, depois, sabemos: o bispo de Roma seria considerado papa, figura central do cristianismo", diz historiador

Gelásio provavelmente nasceu na região da Cabília, onde hoje é o norte da Argélia. Quadragésimo-nono papa, viveu entre 410 e 496 e comandou a Igreja nos seus últimos quatro anos de vida — após a queda do Império Romano, portanto.

Por tradição, acredita-se que ele tenha sido filho de um ferreiro muito humilde. Também se diz que era alguém de hábitos simples e que andava entre os pobres de Roma. Esse comportamento teria lhe rendido a alcunha de "pai dos pobres", conforme conta o hagiólogo Maerki.

Ele tem um papel fundamental no próprio entendimento contemporâneo de que o bispo de Roma está, hierarquicamente, acima de outros bispos.

"Gelásio foi um dos que mais escreveram nesta época. Foi um prolífico escritor, autor de numerosas cartas. E um dos pontos fortes que aparecem nesses documentos é sua visão de que Roma, a diocese a cargo do bispo de Roma, teria primazia sobre as outras", explica Maerki. "Assim, ele é o papa que colocou Roma em destaque, o bispo de Roma em destaque. E, depois, sabemos: o bispo de Roma seria considerado papa, figura central do cristianismo."

Também foi quem lançou a ideia da infalibilidade papal, também dizendo que o poder espiritual estava acima do temporal. "Portanto, os papas e os bispos não poderiam ser julgados por imperadores", explica o pesquisador.

Segundo Maerki, foi também no pontificado de Gelásio que ficou estabelecido o cânone das escrituras, ou seja, quais livros — hoje constantes na Bíblia — poderiam ser considerados oficiais do cristianismo e quais mereceriam ser chamados de apócrifos. "Ele é considerado quem de fato fez essa distinção", afirma.

Por fim, em mais um passo de apropriação histórica de tradições não-cristãs, Gelásio acabou com o antigo festival romano consagrado à fertilidade e purificação, a Lupercália, que se realizava em fevereiro. "Em seu lugar, instituiu outro similar porém adaptado aos costumes cristãos, celebrando a pureza e a fertilidade da Virgem Maria: a Festa da Purificação de Nossa Senhora.

"No início do cristianismo isso foi muito comum: certos ritos, festas, tradições pagãs foram substituídas por festividades cristãs, adaptadas e ressignificadas pela tradição cristã, pelos costumes cristãos", contextualiza Maerki.


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