Neste sábado, enquanto representantes de alto nível de dezenas de países estarão reunidos na Alemanha para discutir a segurança internacional, Vladimir Putin estará em pessoa na supervisão de exercícios de suas forças nucleares estratégicas. Pela primeira vez desde 1999, a Rússia se fará ausente na Conferência de Segurança de Munique.
No centro da agenda do encontro está a escalada de tensão política e militar na fronteira russa com a Ucrânia. Enquanto os EUA e aliados ocidentais acusam o Kremlin de preparar uma agressão armada ao vizinho, Moscou denuncia uma "provocação" do Ocidente destinada a agregar mais um sócio a sua aliança militar, a Otan, e a estabelecer mais um posto avançado nas fronteiras da Rússia.
Ambos os lados disparam contra o adversário a acusação de empurrar o mundo a uma nova "guerra fria" — referência às quatro décadas de confronto entre Estados Unidos e União Soviética, no pós-Segunda Guerra Mundial. E, consciente ou inconscientemente, ambos os discursos — assim como os movimentos reais no tabuleiro geopolítico — incorporam elementos essenciais do confronto que determinou a segunda metade do século 20.
Para a diplomacia brasileira, a crise ucraniana tem especial importância por ter tomado corpo na virada do ano, quando o país voltou a ocupar uma cadeira não permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nas próximas semanas e meses, será preciso tomar posições sobre o confronto entre as duas principais potências militares, que buscam coformar blocos de apoio no organismo.
Quem tudo quer...
Nos dois primeiros anos de mandato, o presidente Jair Bolsonaro fez uma única sinalização clara em política externa: o alinhamento com os EUA de Donald Trump. Desde que o magnata republicano perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, o Planalto e o Itamaraty se viram à margem no mapa da diplomacia americana. E a resposta escolhida por Bolsonaro foi desdenhar o novo parceiro da Casa Branca.
Daqui para a frente, e até pelo menos o fim de 2022, o Brasil terá de conviver com as reverberações da visita feita por Bolsonaro a Moscou, na semana que se encerra. O Itamaraty desdobrou-se em frisar que o acirramento da crise entre Rússia e Otan não teria lugar central nas conversas entre Bolsonaro e Putin. Mas o anfitrião não perdeu a oportunidade de abordar o assunto com a extensão e a profundidade que lhe convinham, nas declarações públicas. E o visitante não resistiu a provocar o desafeto Biden, declarando-se "solidário" ao colega russo.
Só pra contrariar
Para um governo que exibe como troféu a aceitação do Brasil como "parceiro militar (dos EUA) extra-Otan", por parte de Trump, e flerta com o status de "parceiro global" da aliança ocidental, o afago político feito a Putin no Kremlin, em momento crítico do impasse na Ucrânia, soa algo como ousadia. No caso, na visão de quem acompanha o cenário político e diplomático, uma espécie de resposta ao distanciamento adotado por Biden para com o colega brasileiro.
Para quem estuda a história das relações bilaterais, não terá escapado a semelhança com o gesto de Jânio Quadros, ao condecorar, em 1961, o revolucionário argentino Ernesto Che Guevara, então ministro do governo comunista instalado em Cuba sob a liderança de Fidel Castro. Jânio tinha sido eleito, no ano anterior, pela coalizão direitista que combatia a aliança trabalhista-comunista em torno dos herdeiros políticos de Getúlio Vargas.
Jogo de War
Da perspectiva ocidental, Putin repete a Guerra Fria de 1949-1989 quando movimenta 100 mil ou 150 mil efetivos russos para os limites da Ucrânia, por terra e por mar, incluindo tropas engajadas em manobras na vizinha Belarus, um regime aliado. Pela ótica do Kremlin, é a Otan que ameaça a segurança da Rússia ao reforçar sua presença militar às portas da Rússia e acenar com a incorporação da Ucrânia: como país-membro do pacto, qualquer incidente com um ator externo implicaria a solidariedade dos demais parceiros.
O segundo mês do ano se encaminha para o final com o cenário de uma escalada armamentista nos limites geográficos entre Rússia e Otan. Na mídia ocidental, que alimenta em boa parte o noticiário difundido por aqui, predomina a leitura de que Putin trata de criar condições para avançar sobre a Ucrânia, depois de ter anexado à Rússia a estratégica península da Crimeia, em 2014.
Nos meios russos, ao contrário, o noticiário é apresentado sob rubricas como "a frente oriental da Otan". Referência à expansão da aliança liderada pelos EUA desde a dissolução da União Soviética, em 1991, esse "selo" traz embutido um conceito que, algo inócuo para a opinião pública externa, fala ao inconsciente profundo da Rússia. "Frente Oriental" era a designação da Alemanha Nazista para o esforço de guerra iniciado em 1941 contra a URSS, que registrou a morte de 20 milhões de civis na Segunda Guerra.
A mesma praça...
Munique, a sede da conferência de segurança iniciada em 1963, foi palco de um momento definitivo para o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial, a partir de 1939. No ano anterior, na capital da região alemã da Baviera, os chanceleres do Reino Unido e da França — então, as potências europeias que rivalizavam com a Alemanha nazista — cederam à reivindicação de Hitler para anexar a região dos Sudetos, na então Tchecoslováquia.
A ideia era apaziguar o ditador nazista, mas o efeito foi o oposto. Sinalizou, na prática, o consentimento da Europa Ocidental para que o führer fizesse seu avanço para o leste. Pela ótica de Moscou — tanto do governo soviético da época, como do atual "czar" Putin —, a lição aprendida foi de que a Rússia tem de manter os adversários o quanto possível distantes de suas fronteiras.
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