E o Itamaraty falou mais alto

Correio Braziliense
postado em 26/02/2022 00:01

A expectativa que cercou a definição do voto do Brasil na reunião extraordinária de ontem do Conselho de Segurança da ONU, sobre a guerra na Ucrânia, teve um desfecho que, à primeira vista, parece dizer que prevaleceu a linha de intervenção defendida pelo corpo profissional da diplomacia. Ainda que o presidente Jair Bolsonaro não tivesse feito um pronunciamento claro sobre a crise — depois de ter visitado Moscou e se declarado "solidário" ao colega Vladimir Putin — o representante do país no Conselho endossou o projeto de resolução apresentado pelos EUA, condenando como uma "agressão" a ofensiva da Rússia contra o vizinho.

Desde o avanço das tropas russas, na madrugada de quinta-feira, aguardava-se um pronunciamento do governo brasileiro — o Planalto mantinha silêncio até ontem. O Itamaraty divulgou nota no fim da manhã, na qual exercitou um difícil equilíbrio entre a pressão externa por uma condenação expressa ao uso da força por um Estado contra outro e a reticência do presidente a se indispor com um parceitro a quem acabava de prestigiar com uma visita, bem em meio à escalada de tensões.

Entre as conveniências do Planalto e os parâmetros adotados pelo Itamaraty, o voto favorável à resolução proposta por Washington representou tempo diplomático para que o Brasil tente se acomodar entre pressões contraditórias que incidem sobre um governo que, além de tudo, olha com atenção máxima para a eleição de outubro, quando o presidente disputará a reeleição.

Corda-bamba

Por dois dias, o governo Bolsonaro se viu sob pressão interna e externa para tomar posição clara na crise ucraniana. De um lado, Bolsonaro foi desafiado a escolher entre uma afinidade pessoal com o colega russo e uma política, anunciada ainda em campanha eleitoral, de realinhar o Brasil com a diplomacia de Washington.

Inspirada pelo entusiasmo do presidente com as linhas de ação de Donald Trump, na Casa Branca, essa linha-mestra da política externa nos primeiros dois anos de mandato foi posta em xeque com a derrota do presidente americano para o desafiante democrata Joe Biden, em 2020.

O voto alinhado aos EUA, na crítica reunião de ontem, pode ter dissipado uma das áreas de turbulência, mas resta para o Planalto e o Itamaraty lidarem com os desdobramentos da opção, feita nos últimos dias, de subestimar os riscos de guerra. Com a Ucrânia sufocada pelo avanço russo e virtualmente isolada do exterior, o governo pena para elaborar um plano eficaz para a retirada de cerca de 500 brasileiros até ontem retidos em território ucraniano.

Até a véspera do ataque russo, a orientação da embaixada brasileira em Kiev era para que os cidadãos se mantivessem em casa. Nenhum plano de retirada foi colocado em prática até que a situação real tornasse inviável qualquer iniciativa prática.

Ao pé da letra

E, como o diabo mora nos detalhes, nessa crise da Ucrânia ele pode estar em uma letrinha apenas. Porque o nome que se dá a um lugar em disputa pode implicar a tomada de partido — consciente ou não. É o que acontece com uma dessas duas regiões separatistas que a Rússia reconheceu como Estados soberanos.

Luhansk é como vemos grafado (e pronunciado) por aqui, em linha com o padrão adotado pela mídia ocidental. Assim, com "h" (aspirado), é como se fala em ucraniano. Em russo, que é a língua de dois terços da população local, se escreve e se fala Lugansk (é o mesmo com "herói", que, em russo, é escrito e pronunciado "guerói"). Como se vê, "h" ou "g", nesse caso, é bem mais do que uma questão de fonética...

Muro de Berlim

Por fora da questão diretamente entre Rússia-Ucrânia-Otan, interessante acompanhar a Alemanha. A ministra de Relações Exteriores, Annalena Baerbock, é dos Verdes, o partido ecopacifista surgido nos anos 1980 — com uma das raízes nos protestos em massa contra a instalação de mísseis nucleares da Otan no território alemão.

Nessas quatro décadas, os Verdes foram tradicionalmente adversários da participação do país em missões militares externas. Acontece que, na reunificaçao alemã, em 1989/90, a legenda incorporou os movimentos que combateram o regime socialista da hoje finada Alemanha Oriental. E, com eles, internalizou um pronunciado viés antirrusso.

Agora, Annalena Baerbock se coloca em tom bem mais próximo ao dos EUA e da Otan que o chanceler (chefe de governo), o social-democrata Olaf Scholtz — que, como ex-ministro da Economia e realpolitiker, sabe do lugar central que a Rússia ocupa na política externa alemã, mais ainda nessas três décadas de pós-Guerra Fria.

Terceira Guerra

O desenrolar da crise no Leste Europeu reconfirma a máxima de que "a vida imita a arte". Na virada dos anos 1970 para os 1980, momento decisivo para a disputa entre EUA e URSS, o general britânico sir John Hackett, que chegou a integrar o comando da Otan, lançou o livro Terceira Guerra Mundial/1985. A trama se baseia, em grande parte, nos estudos estratégicos da aliança ocidental em torno dos cenários militares de uma ofensiva do Pacto de Varsóvia — a réplica do bloco pró-soviético à Otan.

Curiosamente, mas não de todo surpreendente, o episódio que serve como estopim para o conflito se relaciona ao nacionalismo na Ucrânia — na época, uma das repúblicas que formavam a União Soviética.

Jovem Guarda

Como subsídio para entender como a crise na Ucrânia remete a substratos profundos da psique coletiva, vale a leitura de um romance da prolífica literatura soviética ambientada na 2ª Guerra Mundial. A Jovem Guarda, de Alexander Fadeyev, tem no centro do enredo um grupo de jovens da região do Donbass — a mesma que é pivô do conflito atual — na resistência à ocupação nazista.

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