Guerra no leste europeu

Putin coloca arsenal nuclear da Rússia de prontidão; Ucrânia inicia negociação para cessar-fogo

Diante do aumento das sanções econômicas ao seu país e do reforço da ajuda militar à Ucrânia, Vladimir Putin manda colocar o arsenal nuclear do país de prontidão. Kiev aceita iniciar negociação para um cessar-fogo

Na madrugada de sábado para domingo foi difícil dormir em Kiev. A população, assustada com a escalada dos combates contra o Exército russo nas ruas e temendo um ataque aéreo em massa sobre a capital, buscou refúgio nos muitos bunkers que estão abertos, principalmente em estações do metrô. O ataque avassalador não veio e, pela manhã, algumas pessoas se arriscaram a sair dos abrigos.

Olena Vasyliaka, de 50 anos, aproveitou a calmaria matinal para pegar alguns mantimentos no apartamento dela. "Moramos no último andar e não vou ficar lá em cima com as crianças", disse ela, justificando a decisão de se mudar para o bunker. O marido dela está em combate.

Em um parquinho próximo, Flora Stepanova, 41 anos, fumava um cigarro. Os olhos vermelhos denunciavam a noite não dormida. "Claro que é um pouco perigoso, mas acho que, se você tiver cuidado e olhar em volta, é mais seguro do que ficar o dia todo na frente da televisão, porque você enlouquece", lamentou. Atrás dela, um carro de combate ucraniano mantinha posição de defesa.

Os moradores das principais cidades ucranianas estão sendo orientados a manter desligada a função de localização dos celulares e a cobrir nomes de ruas e avenidas. Outra recomendação é para que evitem conversar com estranhos. A suspeita é que agentes russos estejam infiltrados entre a população civil.

Mas a aparente tranquilidade da manhã invernal em algumas áreas de Kiev (a temperatura mal passa de 0°C) contrastou com os duros combates travados em Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana, a quase 500km a Nordeste da capital, com 1,4 milhão de habitantes, perto da fronteira com a Rússia. As forças do governo informaram que repeliram uma forte tentativa de tomada da cidade pelos russos, mas as batalhas foram sangrentas e deixaram mortos e feridos dos dois lados."Kharkiv está sob nosso controle total", escreveu o governador local Oleg Sinegubov, em redes sociais. Mas poucos se arriscam a sair dos abrigos, sequer para fumar um cigarro em algum parquinho. A cidade parece fantasma.

A tentativa de tomada de Kharkiv começou com o avanço de blindados leves, no início da manhã. Jornalistas que estão na cidade relataram muitos combates nas ruas e tanques russos abandonados ou incendiados. E corpos no chão. Mas não há balanço confiável do número de vítimas.

O Exército ucraniano informou que matou mais de 4,3 mil soldados russos. Kiev lançou um site que permite que parentes de soldados russos mortos possam confirmar as perdas, enquanto Moscou mantém silêncio sobre suas baixas.

Enquanto os ucranianos seguem com o moral alto e conseguem passar para a opinião pública uma imagem simpática de resistência à invasão, Moscou segue a política de divulgar ameaças e poucas informações do front. Um dos raros comunicados de Moscou parecia confirmar a notícia de que Kharkiv resistiu mais uma noite. As tropas russas, segundo o Ministério de Defesa, cercaram duas grandes cidades no Sul, Kherson e Berdiansk, que têm 290 mil e 110 mil habitantes, respectivamente. "A cidade de Genichesk e o aeródromo de Chernobayevka, perto de Kherson, também foram controlados", informou o ministério russo. Nenhuma linha sobre Kiev e Kharkiv.

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Ameaça nuclear

Diante das sanções à Rússia, que não param de aumentar, o presidente do país, Vladimir Putin, decidiu subir o tom das ameaças. E sacou a pior delas: guerra nuclear. "Ordeno ao ministro da Defesa e ao chefe do Estado-Maior que coloquem as forças de dissuasão do Exército russo em alerta especial de combate", disse Putin em uma reunião com comandantes militares. O ministro da Defesa, Sergei Shoigu, respondeu: "Afirmativo". As forças de dissuasão incluem armamento nuclear.

Mas foi aberta uma fresta para negociação de um cessar-fogo. A Rússia vai mandar, provavelmente na manhã de hoje (hora da Ucrânia), uma delegação para se encontrar com negociadores de Volodymyr Zelensky, que aceitou conversar, na fronteira com Belarus, aliada de Putin.

A  resposta do Ocidente às ameaças do líder russo foi imediata: Os aliados europeus anunciaram medidas inéditas para financiar e entregar armamento às Forças Armadas ucranianas em larga escala, incluindo aviões de caça e veículos de artilharia. Pela primeira vez, a União Europeia vai fornecer armas de alto poder de destruição para um país que não integra o bloco.

Decisão histórica

Para a Alemanha, a decisão marca a quebra de um tabu que vem desde a Segunda Guerra Mundial. Derrotada pela aliança entre EUA, Reino Unido e Rússia, a Alemanha sempre agiu com discrição em conflitos armados pelo mundo. Ontem, o chanceler Olaf Scholz anunciou, no Parlamento, a virada radical na postura do país nas políticas externa e de defesa alemãs. "Com a invasão da Ucrânia, agora nos encontramos em uma nova era.

Em poucas horas, o país revogou a proibição de exportar armas letais para zonas de conflito e anunciou que investirá, só neste ano, 100 bilhões de euros (quase US$ 113 bilhões) nas Forças Armadas alemãs. A ameaça de Putin ajuda a construir o discurso para derrubar resistências políticas internas. Um investimento desse porte precisa da aprovação de mudanças na Constituição alemã.

Com reforço de armas e dinheiro, as tropas ucranianas ganham fôlego para enfrentar, em especial, uma longa guerra de guerrilha nas ruas das principais cidades. É o cenário traçado pelo cientista político e analista de Inteligência Qualitativa da FGV Leonardo Paz Neves ao Correio. "Se os russos vierem a ocupar a Ucrânia de forma tradicional, vai ser um inferno. A Ucrânia tem parceiros riquíssimos, União Europeia e Estados Unidos, dispostos a entregar uma porção de coisas. O insurgente ucraniano, se quiser fugir para a Polônia ele foge, porque a Rússia não vai poder atacar a Polônia, que é da Otan. Do ponto de vista da guerra de guerrilha, a Ucrânia está na melhor situação, e Putin sabe disso. Sabe que vai encontrar um inimigo com amigos ricos e rotas de suprimento ilimitadas. Por isso, em algum momento, ele vai querer negociar, do jeito dele."

Gritos pela paz

A escalada das ações de guerra também estimularam os pacifistas a sair de casa. Em Berlim, foram cerca de 300 mil pessoas a pedir o fim da guerra, na avenida que leva ao Portal de Brandemburgo. Mas também houve manifestações pela paz e de apoio aos ucranianos em várias capitais europeias, em Washington e até em Moscou.

Só que, na capital russa, a repressão policial foi feroz. ONGs que atuam na defesa dos direitos humanos na Rússia dizem que mais de 2 mil pessoas foram presas. Em seu sermão dominical, o patriarca da poderosa Igreja Ortodoxa do país, Kirill, mostrou que está fechado com Putin e chamou os opositores de Moscou de "forças do mal". "Que Deus nos salve de a situação política atual na Ucrânia, país irmão que nos é próximo, ser usada de forma a que as forças do mal prevaleçam."

O cerco financeiro à economia russa prosseguiu com mais medidas restritivas ou de exclusão. Países da UE anunciaram o fechamento de seus respectivos espaços aéreos para aviões russos. No sábado, o Ocidente já havia excluído os bancos russos do sistema bancário Swift, uma decisão à qual o Japão aderiu ontem, anunciando também ajuda financeira à Ucrânia.

Enquanto o mundo acompanha perplexo o avançar da guerra, mais de 400 mil pessoas já enfrentaram o gelado inverno russo em carros, trens e até a pé para fugir do país. Cerca de metade desse contingente segue para a Polônia, mas Romênia e Hungria também estão recebendo milhares de refugiados diariamente. E há muitos mais a caminho. A agência da ONU que cuida de refugiados prevê até 7 milhões de deslocados, caso a guerra se prolongue.