Faltando algo mais que seis meses para a eleição presidencial, um tema crucial de política se insinua não apenas na agenda da campanha eleitoral, mas no programa do próximo governo — seja um Bolsonaro 2 ou outra opção. Passada uma semana de guerra na Ucrânia, está consumada uma nova configuração nas relações internacionais em escala global. Em resumo o panorama algo indefinido e fluido que se seguiu à queda do Muro de Berlim, ao fim da União Soviética e, por tabela, da Guerra Fria dá lugar a uma polarização clara, definida e até radicalizada entre (ao menos) dois blocos: o Ocidente, liderado pelos EUA, e a Rússia de Vladimir Putin, que trata de colecionar aliados agora em sua fronteira asiática — em especial, a China.
A guerra na Ucrânia cristalizou o enfrentamento entre a Rússia, agora sozinha, e o bloco ocidental, formado pelos mesmos adversários da hoje finada União Soviética durante a Guerra Fria. A diferença é que, agora, Washington tem ao lado uma Otan que incorpora não apenas os parceiros do século 20: hoje, a aliança militar que confronta Vladimir Putin inclui a maior parte dos antigos integrantes do bloco soviético do Leste Europeu.
A evolução do conflito na Ucrânia, com a imposição de sanções que praticamente isolam Moscou no terreno econômico, tem implicações para iniciativas como o Brics, que faz parte da estratégia traçada pela diplomacia brasileira para buscar a inserção do Brasil em uma ordem global multipolar. Desde agora, e pelo futuro visível, o tom para a conjuntura internacional segue o refrão da letra de Aldir Blanc para o clássico bolero em parceria com João Bosco: são dois pra lá, dois pra cá.
Bumerangue
Washington e Moscou se encaminharam para uma rota de colisão no marco de uma queda de braço em torno não apenas da Ucrânia, mas pelo desenho geopolítico da Europa. A expansão da aliança atlântica até as fronteiras da Rússia deflagrou a reação extrema de Putin, determinado a "empurrar" o adversário de volta na direção da fronteira estabelecida entre os dois lados na Guerra Fria (1949-1989).
A invasão da Ucrânia, porém, surtiu de imediato uma espécie de "efeito bumerangue", da perspectiva de Putin. De saída, a Otan reforçou contingente e armamentos em países fronteiriços à Rússia. Os governos da Alemanha e da França, que formam a dupla de comando na União Europeia, colocaram entre parênteses os interesses de longo prazo em relações estáveis com a Rússia e se renderam à imposição prática de cerrar fileiras com a Casa Branca de Joe Biden. De quebra, países como Suécia e Finlândia, até aqui neutros — em tese, já que se alinham estrategicamente ao bloco ocidental —, acenam com a ideia de aderir formalmente.
Deixa disso
No cálculo futuro da diplomacia brasileira, seja qual for o governo empossado em 1º de janeiro de 2023, terão de entrar necessariamente opções para o dilema que se anuncia entre bombardeios na estepe russo-ucraniana. O Brasil terá margem ainda mais estreita para o exercício de trafegar entre os parceiros do Brics, uma orientação que prevaleceu sobretudo no governo Lula (2003-2010), e o realinhamento com os EUA, perseguido por Jair Bolsonaro.
O espaço diplomático para uma atuação na linha da "turma do deixa disso" estão sendo ocupados pela China, que vem de firmar acordos estratégicos com Moscou, mas não se dispõe a abdicar das vantagens de um comércio fluido com o resto do mundo. Entre quinta e sexta-feira, o presidente francês, Emmanuel Macron (que luta pela reeleição em maio), e o chanceler alemão, Olaf Scholz (que assumiu o posto no fim de 2021), voltaram a manter longas conversas por telefone com o Kremlin.
Como integrante do Brics e vizinho dos EUA no contexto americano, o Brasil tem potencial para transitar entre os polos rivais. Mas terá de reconstituir as relações com o bloco emergente: na crise da Ucrânia, tem sido o único dos cinco em sintonia completa com Washington nas votações conduzidas na ONU — tanto no Conselho de Segurança como na Assembleia Geral.
Posto Ipiranga
Desde que as tropas russas avançaram para a Ucrânia, parceiros e observadores voltaram as atenções para as posições que o governo brasileiro assumiria — até pelos desdobramentos da visita do presidente Jair Bolsonaro a Moscou, com direito a declaração de "solidariedade" a Vladimir Putin. No primeiro movimento, prevaleceu a postura defendida pelo corpo diplomático profissional na votação em que o país se alinhou com a resolução proposta pelos EUA para condenar a Rússia.
Ainda assim, Bolsonaro seguiu insistindo na "neutralidade" e resistindo a classificar a ofensiva russa como agressão. Enquanto isso, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, se recolhia ao silêncio depois de publicamente desautorizado pelo presidente. No dia em que Putin anunciou a ofensiva, Mourão não apenas condenara a "invasão", como defendera o uso da força por parte do Ocidente em defesa da Ucrânia.
Depois dos mal-entendidos e algo mais colecionados por Bolsonaro com Emmanuel Macron, Angela Merkel e Joe Biden, um observador europeu do cenário brasileiro não resistiu a provocar: "Pelo jeito, ele não tem um 'posto Ipiranga' para política externa".
Ao pé da letra
Como parte da adesão incondicional à causa da Ucrânia sob invasão russa, uma rede de supermercados britânica decidiu mudar o nome de um prato oferecido há tempos aos consumidores. O "frango à Kiev" passa a ser chamado de "frango à Kyiv". A mudança, irrelevante na pronúncia, se soma à opção quase unânime da mídia ocidental por pronunciar e grafar o nomes de uma das duas provìncias do leste ucraniano controladas por separatistas pró-Moscou: Luhansk, em lugar da versão russa, Lugansk.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.