A intransigência das armas no front determinou o fracasso do primeiro encontro de alto nível entre Rússia e Ucrânia. Os respectivos ministros das Relações Exteriores Serguei Lavrov e Dmytro Kuleba não chegaram a um consenso sobre um cessar-fogo durante a reunião na cidade turística de Antalya, no sul da Turquia. O enviado de Kiev acusou o representante do presidente russo, Vladimir Putin, de querer limitar o diálogo sobre corredores humanitários e de ignorar a demanda de 24 horas de trégua. "O primeiro motivo que me trouxe aqui foi a questão humanitária, as evacuações. Mas Lavrov não prometeu nada nesse ponto", criticou Kuleba. Ao fim do encontro, o chanceler russo declarou que Putin não recusaria um inédito encontro com o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, para debater "temas específicos".
Em 15 dias de invasão russa à Ucrânia, pelo menos 549 civis morreram e 2,3 milhões fugiram dos combates, segundo as Nações Unidas. Na noite de ontem, Moscou divulgou a abertura, diariamente, de corredores humanitários entre os dois países. "Anunciamos, oficialmente, que os corredores humanitários para a Federação Russa agora serão abertos unilateralmente, sem coordenação, todos os dias, a partir das 10h", declarou Mikhail Mizintsev, alto funcionário do ministério russo da Defesa.
Ao mesmo tempo, a Rússia intensificou os bombardeios, horas depois de um ataque destruir um hospital pediátrico na cidade portuária de Mariupol (sudeste). Três pessoas morreram no bombardeio, entre elas uma criança, e 17 ficaram feridas. Moscou nega o atentado e acusa Kiev de criar um espetáculo. "O suposto bombardeio aéreo é uma provocação completa encenada para manter a agitação antirrussa entre o público ocidental", disse o ministro da Defesa, Igor Konashenkov.
Em seu perfil no Twitter, Kuleba criticou o homólogo russo. "Durante nosso encontro com o ministro Lavrov, mediado pelo chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, insisti na urgente necessidade de ajuda humanitária para Mariupol e um cessar-fogo de 24 horas. Infelizmente, Lavrov pareceu ter vindo para falar, não para decidir. Espero que transmita as demandas da Ucrânia quando retornar a Moscou", escreveu o chefe da diplomacia ucraniana.
Lavrov negou que a Rússia tenha atacado a Ucrânia, e acusou a ex-república soviética de ser um "instrumento de manipulação do Ocidente" e de colocar em risco a segurança da Europa com a suposta fabricação de armas biológicas. O chanceler russo foi enfático ao comentar a guerra, chamada pelo Kremlin de "operação especial". "Não estamos interessados em justificar nossas ações na Rússia. Queremos discutir as garantias da Ucrânia, da Europa como um todo e, logicamente, da Rússia", disse Lavrov. Ele assegurou que o anseio da Ucrânia de aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) representa uma ameaça a Moscou.
Ao ser questionado por um jornalista do diário russo Kommersant sobre o risco de a guerra na Ucrânia se tornar um conflito nuclear, Lavrov respondeu: "Não quero acreditar e não acredito".
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Pacto
Pós-doutor em ciência política pela Universidade Estadual de Sumy, o ucraniano Mykola Nazarov admitiu ao Correio que o fiasco da reunião na Turquia era "bem previsível". "As posições da Ucrânia e da Rússia estão muito polarizadas. Este não é o momento para firmar compromissos", opinou. Ele acredita que Kiev e Moscou precisam costurar um acordo internacional sobre garantias de segurança para a Ucrânia. "Esse pacto deve ser do interesse de ucranianos, de russos e também do Ocidente. A prioridade, para a Rússia, é que a Ucrânia fique fora da Otan. Meu país está pronto para compromissos, mas precisa de salvaguardas de segurança."
Anton Suslov, pesquisador da Escola de Análise Política de Kiev, deixou a capital ucraniana em 26 de fevereiro e se instalou em Zaporizhzhia, cidade onde os russos atacaram uma usina nuclear, cinco dias depois. O especialista disse à reportagem que ninguém na Ucrânia tinha ilusões sobre o eventual sucesso dessas negociações. "Apesar dos fracassos militares das tropas russas em meu país, o Kremlin continua a insistir em suas demandas absurdas e completamente inaceitáveis", afirmou.
Por sua vez, o também ucraniano Serhiy Kvit, reitor da Universidade Nacional da Academia Kyiv-Mohila, reagiu com ceticismo ao resultado do encontro entre os chanceleres. "Não há nada a ser analisado. Isso porque Lavrov é um propagandista, não um diplomata. Ele não tem intenção de concluir nenhum acordo. Tanto que a guerra continua", declarou à reportagem. "Nós vamos o Exército russo no campo de batalha. As sanções impostas pelo Ocidente destruirão a economia russa. Essas serão as bases para negociações efetivas."
Moradora de Lviv (oeste), a jornalista Iryna Matviyishyn, 29 anos, disse que somente imagina sua nação sob a bandeira ucraniana. "Não existiremos sob a bandeira da Rússia. Tudo o que os russos semeiam é terror e opressão. Eles cerceiam as liberdades. Somos um país democrático. Já são tantas crianças vítimas, elas jamais se esquecerão nem perdoarão os russos", desabafou ao Correio.
Polônia
Em visita a Varsóvia, a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, conversou por duas horas com o presidente polonês, Andrzej Duda, e reforçou o caráter solidário da aliança militar ocidental na mais grave crise a atingir a Europa desde a Segunda Guerra Mundial. "Eu já disse isso muitas vezes e vou dizer novamente. Os EUA estão preparados para defender cada centímetro do território da Otan", afirmou Kamala. "A aliança da Otan é mais forte, e a Rússia é mais fraca por causa do que Putin fez. Isso está muito claro para nós", acrescentou.
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Mariupol, uma cidade sitiada
Olena Zolotariova, uma professora ucraniana de 44 anos, falou pela última vez com os pais ontem à noite. Os três choraram ao telefone. "Eles me disseram que estão vivos e me pediram uma única coisa: que não entreguemos Mariupol para a Rússia. Também afirmaram que estão prontos para viver no porão, caso o Exército ucraniano não recue", contou ao Correio. Olena deixou a cidade portuária ao sul da Ucrânia em 24 de fevereiro para um passeio em família. O casal voltou à cidade antes dos bombardeios. A filha ficou em Dnipro, a 310km. Tentou voltar dois dias atrás, mas os acessos a Mariupol estão bloqueados pelas tropas russas.
"Hoje (ontem), fui informada de que minha casa foi completamente destruída. Ontem (quarta-feira), eles bombardearam a maternidade, onde dei à luz meu filho, e a universidade onde eu lecionava", relatou. "Mas a principal coisa para mim é que meus pais estão vivos. Nós reconstruiremos as casas. A principal coisa aqui é a vida humana", desabafou.
De acordo com Olena, Mariupol tem sido alvo de bombardeios sistemáticos. "Os russos atacam residências e infraestrutura — abrigos, escolas, torres de telefonia, lojas, hospitais e maternidades. Antes, disparavam mísseis; depois, foguetes. Agora, lançam bombas." Trabalhadores humanitarios advertem que a situação na cidade é "apocalíptica". "O cenário é catastrófico. As forças russas deixaram a cidade sem telefonia, internet, eletricidade, água e sistema de calefação. Os civis estão no limite da sobrevivência. Algo parecido com filmes sobre a Segunda Guerra Mundial", disse a professora.
Os moradores que ficaram presos em Mariupol enfrentam temperaturas gélidas sem aquecimento e precisam cozinhar os alimentos em fogueiras. "A água é retirada do esgoto ou da neve derretida", contou Olena. Por causa do bloqueio, itens essenciais, incluindo medicamentos, não chegam à cidade. Em uma cidade de meio milhão de habitantes, dos quais 1.200 morreram, somente restaram dois pontos de comunicação com o mundo externo.
Uma tentativa de criar um corredor humanitário para retirar civis de Mariupol fracassou. Ontem, ninguém conseguiu sair da cidade. Ataques aéreos russos também impediram a chegada de comboios carregados de mantimentos e insumos. "Bombas estão atingindo casas", denunciou o conselho administrativo de Mariupol, abandonada pelo mundo.