Concessões à mesa

Ucrânia aceita desistir da Otan se países europeus garantirem sua segurança. Rússia anuncia redução "drástica" da ofensiva em Kiev, mas nega cessar-fogo. EUA e Reino Unido reagem com ceticismo e cobram ações efetivas. Zelensky vê "sinais positivos"

Rodrigo Craveiro
postado em 30/03/2022 00:01
 (crédito: Murat Cetin Muhurdaar/AFP)
(crédito: Murat Cetin Muhurdaar/AFP)

Promessas, concessões e otimismo comedido marcaram a rodada de negociações entre Ucrânia e Rússia, em Istambul, sob a mediação do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Os russos se comprometeram a reduzir "drasticamente" a ofensiva em Kiev e nos arredores, enquanto os ucranianos admitiram desistir da adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em troca de um mecanismo de garantia internacional de segurança. Para David Arakhamia — negociador enviado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky  —, as nações garantidoras atuariam inspiradas no capítulo 5 do Tratado do Atlântico Norte, segundo o qual uma agressão a um país-membro da aliança é um ataque contra todo o pacto. Pela primeira vez, Arakhamia reconheceu "condições suficientes" para uma cúpula entre Zelensky e o homólogo russo, Vladimir Putin. Em mensagem difundida por vídeo, o próprio Zelensky classificou como "positivos" os sinais ouvidos nas negociações, mas lembrou que eles não calam as explosões das bombas russas. 

O vice-ministro da Defesa da Rússia, Alexender Fomín, revelou que "as negociações sobre um acordo de neutralidade e o status não nuclear da Ucrânia entram em uma dimensão prática". A questão da neutralidade da Ucrânia é uma das principais demandas de Moscou para pôr fim à guerra. Zelensky se disse disposto a aceitar os termos, acompanhados de garantias de segurança e de desnuclearização do Estado. Em relação à catástrofe humanitária na cidade portuária de Mariupol (sudeste), onde pelo menos 5 mil civis teriam sido mortos, Putin exigiu que os milicianos nacionalistas acabem com a resistência e deponham armas. 

O anúncio da Rússia foi recebido com cautela pela comunidade internacional e pelos analistas. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse "esperar ações" por parte de Moscou. "Veremos se eles (russos) seguirão o que sugerem. Tive uma reunião com os líderes de três outros aliados da Otan — França, Alemanha e Reino Unido — e parece haver um consenso sobre vermos o que a Rússia tem a oferecer", comentou o democrata. Na tarde de ontem, o Pentágono declarou que a Rússia está "reposicionando" suas forças perto de Kiev, mas negou chamar a manobra de "retirada". "Todos deveríamos estar preparados para ver uma grande ofensiva contra outras áreas da Ucrânia", declarou o porta-voz do Departamento de Defesa, John Kirby. "Isso não significa que a ameaça contra Kiev acabou."

Por sua vez, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, afirmou que julgará Putin e seu regime "por suas ações, não pelas palavras". "Houve alguma redução dos bombardeios russos no entorno de Kiev, principalmente porque as forças ucranianas têm sido bem-sucedidas em repelir com sucesso as ofensivas russas no noroerste da capital", explicou o premiê. "Não queremos ver nada mais do que a completa retirada das forças da Rússia da Ucrânia."

Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), adverte sobre a impossibilidade de determinar se o anúncio feito pela Rússia em Istambul é verdadeiro ou não. "Moscou tem declarado uma coisa e feito outra totalmente diferente. Desde o início da guerra, os russos dizem que não estão atacando a Ucrânia. Chegaram a nos acusar de usarmos mísseis de cruzeiro contra nós mesmos."

O especialista admitiu ao Correio uma possível operação de disfarce, por parte da Rússia. No entanto, Haran não descarta que, ciente de problemas no front, o Kremlin possa utilizar uma pausa nos combates para recrutar soldados e retomar a ofensiva. Outra possibilidade envolveria o uso de recursos limitados para um ataque a Donbass, no leste da Ucrânia. "Aqui, em Kiev, houve várias explosões, hoje (ontem). Então, não sei o que esse anúncio russo significa", desabafou. Haran concorda que a Ucrânia necessita de garantias reais de segurança. "Mas, não pode ser um pedaço de papel ou um memorando sem valor. As garantias precisam ser dadas pelas grandes potências, além de Alemanha, Polônia e Turquia."

"Já vimos esse roteiro antes", alfinetou Peter Zalmayev, diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative, baseada em Kiev. Segundo ele, antes das rodadas de negociação de paz, os russos costumam emitir uma sinalização positiva. "Antes da invasão, Putin anunciou um recuo militar. Na verdade, reagrupou forças, aumentou o contingente na fronteira e atacou a Ucrânia. Seria muito ingênuo considerar as palavras de Moscou agora", advertiu. Ele acredita em um estratagema do Kremlin para ganhar tempo, se rearmar e tentar capturar a capital ucraniana. 

Bombardeios

Apesar do progresso das negociações, os bombardeios prosseguiam. Em Mikolaiv (sul), um ataque contra a sede do governo regional deixou 12 mortos. Zelensky condenou o bombardeio e assegurou que nenhum alvo militar foi atacado. Moradora de Kiev, a parlamentar ucraniana Inna Sovsun (leia Duas perguntas para) ridicularizou o anúncio feito pela Rússia em Istambul. "Eu, literalmente, posso sentir essa 'redução' nos ataques. Todas as possíveis sirenes antiaéreas foram acionadas na capital. Depois disso, escutei explosões. Você nunca pode confiar em terroristas!", criticou, por e-mail. 

Para se proteger, Inna tomou uma atitude radical. "Na noite passada, dormi dentro do closet, por não ter janelas, apenas paredes. Milhares de ucranianos têm que viver nas estações de metrô ou em porões frios e úmidos durante semanas, enquanto esperam não morrer", relatou.

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Duas perguntas para - Inna Sovsun, parlamentar ucraniana

 (crédito: Arquivo pessoal )
crédito: Arquivo pessoal

Inna Sovsun, parlamentar

ucraniana e vice-presidente da Faculdade de Economia de Kiev

De que maneira a guerra afetou os trabalhos do Verkhovna

Rada (Parlamento da Ucrânia)?

O Parlamento tem convocado várias sessões de trabalho durante a guerra. Também temos trabalhado regularmente com nossos comitês  para reagirmos efetivamente aos desafios do período de guerra. A qualquer momento estamos prontos para votar projetos de lei que o país precisar. Agora, além de meus deveres habituais, faço o melhor que posso para contar ao mundo sobre como a Ucrânia está resistindo à invasão russa, e por que precisamos extremamente de zonas de exclusão aérea, de caças, de artilharia antiaérea, de sistemas de mísseis, de tanques, de blindados e de munição.

A senhora vê indícios de crimes de guerra na Ucrânia?

O mundo inteiro pode ver esses crimes terríveis. Localidades e cidades, como Irpin, Bucha, Kharkiv, Sumy, Chernihiv, Izium e Kiev estão sendo regularmente bombardeadas pelas tropas russas. Elas assassinam civis, destróem escolas, jardins de infância, orfanatos, hospitais. Ninguém, nem nada, está em segurança. Os russos estupram mulheres ucranianas. Eles já mataram mais do que 143 crianças, não sabemos exatamente quantas mais morreram na aterrorizada Mariupol. O Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, assim como a administração pública de Mariupol, oficialmente afirmam que mais de 6 mil ucranianos foram deportados à força para "campos de filtragem" na Rússia. Este é outro ato terrível de crime de guerra cometido pelos ocupantes russos. (RC)

Sanções são as maiores em 80 anos

 (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

No dia em que países da União Europeia (UE) — como Bélgica, Holanda, Irlanda e República Tcheca — anunciaram a expulsão de dezenas de diplomatas russos suspeitos de espionagem, os embaixadores da Alemanha e da França no Brasil, respectivamente Heiko Thoms e Brigitte Collet, reuniram a imprensa, expressaram preocupação com os impactos da guerra e advertiram que as sanções impostas à Rússia são as maiores já aplicadas a uma nação desde o fim da Segunda Guerra Mundial. "Estamos imensamente preocupados com os efeitos da guerra nas nossas fronteiras, mas também em outros lugares do mundo", destacou Thoms.

Embora haja investimentos, um conflito prolongado deverá precarizar ainda mais a condição econômica mundial. "É uma crise global. Não vejo mais chances, vejo riscos. Afinal, todos nós vamos sofrer", alertou o diplomata alemão. Além da questão energética com o impacto da guerra, a soberania alimentar de mais de 30 países preocupa o Conselho Europeu e o G7, grupo das nações mais ricas do mundo.

De acordo com Collet, 750 milhões de pessoas de 30 nações da África e do Oriente Médio começaram a sentir os efeitos das sanções comerciais impostas à Rússia, bem como a ausência de oferta de energia e alimentos oriundos da Ucrânia. "São países que dependem em mais de 50% de importações da Rússia e da Ucrânia de trigo, configurando uma crise que pode ser traumática a países que já são frágeis", disse a embaixadora francesa. Os países ricos analisam estratégias de investimento para ampliar a produção de alimentos. O objetivo, segundo a francesa, é permitir que nações dependentes de exportação aumentem investimentos em produção sustentável de alimentos.

Expulsões

A Bélgica decidiu expulsar 21 pessoas que trabalham para a embaixada e o consulado russos, suspeitos de envolvimento em "operações de espionagem", anunciou a ministra das Relações Exteriores belga, Sophie Wilmès. A Irlanda expulsou quatro diplomatas russos por considerar que suas atividades "não cumprem com as normas internacionais de comportamento diplomático". A Holanda avisou que exigirá a saída do país de 17 diplomatas russos que atuavam como oficiais de inteligência.

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