Adeus à Europa do século 20

Correio Braziliense
postado em 16/04/2022 00:01

Um dado particularmente chocante da eleição presidencial francesa, no domingo passado, retrata a profundidade com que a ordem política construída na Europa do pós-Segunda Guerra se transforma. Uma das faces é a de Marine Le Pen, que confirma o lugar da ultradireita dita populista, ou nacionalista, no sistema partidário que se redesenha. Outra é a implosão eleitoral de socialistas e republicanos, que por décadas protagonizaram a versão mais clássica do duelo entre direita e esquerda.

O presidente Emmanuel Macron, ele próprio personagem de um novo perfil político, de corte centrista, larga na frente para o segundo turno, no dia 24. Mas, com seus 23% dos votos, Le Pen colocou o Reagrupamento Nacional, legenda repaginada para reeditar a disputa de 2017, na condição de contrapeso ao que se prenuncia como o segundo governo de Macron.

 Encolheu

O fenômeno tem paralelos em outros países europeus, mas na França se apresenta com especial nitidez. O Partido Socialista, que governou por 14 anos com François Mitterrand (1981-1995) e mais cinco com François Hollande (2012-2017), saiu das urnas com menos de 2% dos votos. O Republicanos, herdeiro do gaullismo e das presidências de Jacques Chirac (1995-2007) e Nicolas Sarkozy (2007-2012), não chegou a 5%.

No campo da esquerda, o PS é a segunda legenda histórica que praticamente sai de cena, depois do Partido Comunista. O vácuo foi ocupado por uma nova força, a França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, que marcou 22% e teria chegado ao segundo turno com os 1,74% da socialista Anne Hidalgo.

 Dança das cores

Na Alemanha, a reengenharia partidária incorpora os desdobramentos das três décadas passadas desde a reunificação, em 1990. Até então, o sistema parlamentar da metade ocidental se apoiava num tripé. Democracia-cristã, pela direita, e social-democracia, pela esquerda moderada, eram os volksparteien — partidos de massa, capazes de formar maiorias. Como fiel da balança, ao centro, os liberais. Respectivamente, são identificados pelas cores da bandeira: preto, vermelho e amarelo.

Desde os anos 1980, os ecopacifistas acrescentaram o verde ao mosaico. Na década seguinte, entrou no espectro um vermelho mais carregado, com os pós-comunistas da metade oriental. Os dois volksparteien seguiam controlando, somados, mais de dois terços do eleitorado. As duas últimas eleições, porém, marcaram a entrada da Alternativa para a Alemanha (AfD), de ultradireita, parente consanguínea da variante francesa de Marine Le Pen.

Com seis tonalidades, quase um arco-íris, vermelhos e pretos mal conseguem somar maioria, e se multiplicam as opções de arranjos para coalizões de governo. O atual, encabeçado pelo social-democrata Olaf Scholz, forma com Verdes e liberais a inédita fórmula batizada de "semáforo".

 Tutti quanti

É a Itália que oferece a versão talvez mais eloquente e ruidosa da desmontagem do sistema político-partidário do pós-guerra. Nas quatro décadas até o fim da Guerra Fria, o cenário foi dominado por democratas-cristãos, à direita, e comunistas, à esquerda. Entre os dois, uma nuvem de partidos menores que dividiam entre si um terço do eleitorado. A DC conseguiu se manter no comando quase por todo o tempo, mas chefiando sucessivos governos frágeis e efêmeros que renderam ao país a fama de "Bolívia europeia".

O lendário Partido Comunista Italiano, que chegou a ser o maior da "família" fora do bloco socialista, não sobreviveu à queda do Muro de Berlim e ao fim da União Soviética. Seu sucedâneo, o Partido Democrático, é hoje o núcleo de uma centro-esquerda difusa. A Democracia Cristã sucumbiu à ofensiva anticorrupção da Operação Mãos Limpas, e seu espaço é ocupado hoje pela legenda formada pelo empresário Silvio Berlusconi.

Para complicar o quadro, cerca de metade do eleitorado se divide entre outros dois partidos que se perfilam no parlamento como fatores para viabilizar (ou torpedear) uma maioria. Com cara mais definida, uma ultradireita afinada com os similares da França e Alemanha. Mas a Itália tem o ingrediente singular do movimento "antipolítica" Cinco Estrelas. Seu fundador, o comediante Beppe Grillo, roubou a cena declarando guerra a "todos os outros". Em 2018, o 5S saiu das urnas como a legenda mais votada para o parlamento.

 Contramão

Entre os países sempre observados de fora como parâmetros de organização política, é o Reino Unido que parece exibir mais resiliência de seu sistema bipartidário de alternância no poder. Como desde antes da Segunda Guerra, a gangorra segue oscilando entre conservadores e trabalhistas.

O Parlamento britânico não ficou imune ao avanço de uma variante própria de ultradireita populista, que ali apresentou como lema a rejeição à União Europeia. A campanha resultou em plebiscito sobre o tema e os eurocéticos chegaram a despontar como alternativa para o "baião de dois".

O Brexit passou, mas a bandeira foi "roubada" pelo atual premiê, o conservador Boris Johnson. Há quem diga que ele mudou o perfil do partido centenário, mas conduziu o "divórcio" com a UE e, ao menos por ora, a velha ordem bipolar foi restabelecida.

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