Em janeiro de 2021, o governo do Reino Unido demonstrou preocupação com "restrições continuadas aos direitos civis e políticos e à liberdade de imprensa" em Ruanda. Na ocasião, Londres exortou o país do centro-leste da África a seguir os modelos da Commonwealth (a comunidade britânica de nações) no que diz respeito à democracia, ao Estado de direito e ao respeito pelos direitos humanos. Ontem, um anúncio feito pelo primeiro-ministro Boris Johnson causou polêmica e estranheza: dezenas de milhares de imigrantes poderão ser colocados dentro de aviões e enviados para Ruanda, a 6,4 mil quilômetros do Reino Unido.
"O acordo que fizemos com Ruanda não tem limite. Ruanda terá a capacidade de reassentar dezenas de milhares de pessoas nos próximos anos", declarou Johnson. "Sejamos claros: Ruanda é um dos países mais seguros do mundo, mundialmente reconhecido por saudar e integrar migrantes", acrescentou. Quando confrontado por jornalistas sobre o histórico negativo de direitos humanos de Ruanda, o premiê disse que o país africano "transformou-se totalmente". "Ao longo das últimas décadas, ele mudou totalmente em relação ao que era", disse. Organizações de defesa dos direitos humanos reagiram com indignação à declaração e ao plano migratório de Londres.
A ministra do Interior britânica, Priti Patel, viajou a Kigali, capital ruandesa, onde assinou o acordo com Vincent Biruta, ministro das Relações Exteriores e da Cooperação Internacional. Pelos termos do pacto, Ruanda receberá 120 milhões de libras esterlinas (R$ 732 milhões) "para acolher solicitantes de asilo e migrantes e dar a eles um caminho legal para a residência". Biruta defendeu a parceria estabelecida com Londres. Segundo ele, o acordo se baseia na tradição de Ruanda de hospedar pessoas que fogem de conflitos. "Isso garantirá que os migrantes sejam protegidos e tenham oportunidades de viver e trabalhar em Ruanda, ao lado de ruandeses, se optarem por se estabelecer aqui", escreveu no Twitter.
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Violações
Diretor para África Central da Human Rights Watch (HRW), Lewis Mudge afirmou ao Correio que Ruanda não respeita o Estado de direito nem alguns dos mais fundamentais direitos humanos. "Qualquer pessoa percebida como crítica ao governo ou a suas políticas pode ser alvejada. Detenção arbitrária, maus-tratos e tortura em centros de detenção oficiais e clandestinos são comuns. Em muitos casos, os padrões de julgamento justo são desrespeitados", lembrou. O mais preocupante, segundo ele, é que a afirmação de Johnson sobre a suposta segurança em Ruanda contradiz por completo a análise do próprio governo britânico.
Por sua vez, Bill Frelick — diretor da HRW para Direitos de Refugiados Migrantes — acusou o Reino Unido de se esquivar de suas responsabilidades com as pessoas que buscam asilo em suas costas, ao enviá-las para um país com menos capacidade de examinar as solicitações e de fornecer a proteção necessária aos refugiados. "Londres busca criar um sistema de asilo de duplo nível que discrimine um grupo com base na sua chegada irregular. A lei internacional de refugiados reconhece que os solicitantes de asilo são muitas vezes obrigados a cruzar fronteiras irregularmente para buscar proteção, e o status de refugiado se baseia apenas na necessidade de uma pessoa ser protegida de perseguição", disse ao Correio.
Frelick duvida que Ruanda tenha condições de fornecer proteção efetiva aos imigrantes ilegais. "Na prática, tais condições raramente, ou nunca, são atendidas. Os acordos da Austrália com Nauru e com Papua Nova Guiné deixaram refugiados e solicitantes de asilo em condições abismais, sem proteção eficiente. Tanto legal, quanto moralmente, a criação de duas categorias de refugiados — uma que chega legalmente por via aérea e outra, ilegalmente, pelo mar — não é compatível com a Convenção sobre Refugiados e os princípios da não-discriminação", alertou o diretor da HRW para Direitos de Refugiados Migrantes.
Diversionismo
O acordo entre Reino Unido e Ruanda foi visto pela oposição britânica como uma manobra diversionista; busca desviar o foco da participação de Johnson e assessores em festas ilegais durante o lockdown. Na terça-feira, o premiê foi multado por causa do escândalo. Para o britânico Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham, o primeiro-ministro tenta apaziguar a ala extrema-direita anti-imigrantes do Partido Conservador, ao não anunciar uma solução humana e eficaz para a imigração ilegal. "Nenhum dos migrantes queria ir a Ruanda, eles desejavam vir para o Reino Unido. Agora, serão presos e deportados para Ruanda, a 7 mil quilômetros daqui, onde serão internados no que muitos veem como campos de concentração", afirmou ao Correio.
Agnes Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional, advertiu que enviar pessoas para outro país — "muito menos um com um registro tão sombrio de direitos humanos" — para processamento de asilo é "o cúmulo da irresponsabilidade e mostra o quão distante da humanidade e da realidade o governo britânico se encontra em temas ligados ao asilo".
Advogado especializado em imigração, com mais de 30 anos de experiência, o britânico Simon Cox explicou que o tamanho do plano ainda é desconhecido. "Não sabemos quantos imigrantes Ruanda aceitou receber ou o valor que o Reino Unido concordou em pagar por imigrante enviado ao país africano. Mas, me parece extremamente improvável que uma proporção importante de ilegais seja enviada da Grã-Bretanha para Ruanda", disse à reportagem. Ele acredita que o propósito do plano seja propagandístico. "Parece-me ser dirigido aos eleitores, na tentativa de mostrar que o governo está 'no controle' da situação", aposta. "Mas também é uma tentativa de mudar o debate para uma mentalidade mais punitiva."