Francisco calça as sandálias

por Silvio Queiroz
postado em 07/05/2022 00:01

O papa "do fim do mundo", como se definiu o cardeal argentino Jorge Bergoglio ao assumir o Trono de Pedro, em 2013, abriu o jogo nesta semana e revelou que, desde março, tenta um encontro cara a cara com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Francisco vem falando com insistência sobre a guerra na Ucrânia, condenando a invasão russa e fazendo apelos em favor dos civis. Dessa vez, porém, avançou alguns passos e falou sobre a dinâmica política do conflito.

Não é comum que a Santa Sé se pronuncie sobre o mérito de uma disputa internacional. Tanto mais porque, embora mantenha a diplomacia institucional mais antiga, o Vaticano tem a medida da própria influência no mundo do século 21 — incomparável com o papel que chegou a desempenhar, por exemplo, na idade média e moderna.

Dessa vez, o primeiro sul-americano a liderar a Igreja Católica entrou no debate. Além de lamentar a renitência do Kremlin em aceitar a proposta de interlocução, o pontífice permitiu-se uma observação no mínimo controversa: atribuiu aos EUA e seus aliados ocidentais parte da responsabilidade pela crise. Talvez, ponderou, "os latidos da Otan às portas da Rússia" tenham provocado "a raiva" do presidente Vladimir Putin.

Mão na cumbuca

A declaração, feita em entrevista ao Corriere della Sera, repercutiu intensamente, em particular nos países que integram a aliança atlântica. Mas, como a prudência é traço inseparável de uma instituição milenar, a leve censura ao Ocidente foi complementada por mais uma menção à ilegalidade flagrante da "agressão de um Estado soberano a outro Estado soberano".

Por sinal, a Santa Sé cancelou um encontro, originalmente previsto para junho, entre Francisco e o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Kirill. O papa, como o macaco do conhecido ditado, não coloca a mão na cumbuca.

Vestiu a carapuça

Não é a primeira vez que Francisco calça as sandálias do pescador, figura de linguagem que inspira o título de um romance clássico sobre o papado nos tempos atuais — inclusive durante momentos críticos da Guerra Fria. Nos primeiros anos de seu pontificado, coube à Santa Sé papel central nas manobras discretas que permitiram o degelo entre EUA e Cuba, culminando no reatamento formal de relações diplomáticas, em 2015.

No livro publicado em 1963, entre os ecos do Concílio Vaticano II, no qual João XXIII conduziu a Igreja ao aggiornamento, o australiano Morris West mergulha na alma de um papa fictício, igualmente "do fim do mundo". O ucraniano Kiril Lakota, eleito de maneira surpreendente para suceder um progressista, se defronta com uma bateria de problemas de alcance e origem distintos, mas com um ponto em comum: o desafio que representavam, para a Santa Sé, de acertar o passo com a vida presente.

No romance, como no filme de 1968, cabe a Kiril I a missão de evitar o confronto direto entre os EUA e a (hoje extinta) União Sovíetica, onde tinha amargado a condição de preso político.

 Séculos de janela

Não é preciso se afastar muito, no espaço ou no tempo, para enxergar a intervenção do Vaticano em episódios decisivos da história mundial. No auge do seu poderio, o papa Alexandre VI intercedeu entre Espanha e Portugal para que firmassem o Tratado de Tordesilhas, que dividiu as terras da América entre as duas potências coloniais navais — às vésperas da chegada das caravelas ao Brasil.

Mais recentemente, na virada de 1978 para 1979, João Paulo II conseguiu brecar, quase na última hora, uma guerra entre as ditaduras militares do Chile e da Argentina pelo controle do Canal de Beagle, no extremo sul do continente.

 Quantas divisões?

Faz parte do folclore político do século 20 uma pergunta sarcástica atribuída ao líder soviético Josef Stalin, na qual fica patente a posição incomparavelmente mais discreta ocupada pela Santa Sé no período entre as duas guerras mundiais.

Em 1935, diante das ameaças já então formuladas pela Alemanha nazista, o chanceler da França, Pierre Laval, foi a Moscou discutir um pacto de não agressão. Perguntado sobre as capacidades militares do país, respondeu sem muitos detalhes e acenou com outro argumento destinado a atrair o interlocutor: um acordo, nas linhas propostas, ajudaria a amaciar o papa Pio XI, crítico severo da perseguição aos católicos na URSS.

"Ah, o papa...", teria respondido Stalin. "Quantas divisões mesmo tem o papa?"

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