Reino Unido

O assassinato de parceiro abusivo que dividiu duas famílias

Em 2015, Farieissia Martin foi condenada por assassinar Kyle Farrell; em 2021, sua sentença foi alterada

BBC
Hannah Price - BBC Three
postado em 18/05/2022 08:22 / atualizado em 18/05/2022 08:22
 (crédito:  Getty Images)
(crédito: Getty Images)

*O texto contém trechos que podem ser considerados perturbadores.

Em junho de 2015, Farieissia Martin, conhecida como Fri, foi condenada pelo assassinato do seu ex-parceiro, Kyle Farrell, no Reino Unido.

Ela foi condenada à prisão perpétua, com pena mínima de 13 anos. Mas a família de Fri afirma que sua condenação foi um erro. Já a família de Kyle insiste que a justiça foi feita. No entanto, um recurso com novas evidências levou à anulação da sentença após sete anos.

A BBC conversou com pessoas próximas a Fri e Kyle sobre seu relacionamento, os processos judiciais e como o que aconteceu naquela noite mudou a vida das duas famílias para sempre.

Sexta-feira, 21 de novembro de 2014

No dia 21 de novembro de 2014, às 4h50 da manhã, o serviço de emergência de Liverpool, no Reino Unido, atendeu uma ligação desesperada. O som picotava, mas era possível ouvir uma voz feminina dizendo "meu namorado, meu namorado foi esfaqueado... por favor".

Poucos minutos depois, era possível ouvi-la dizendo "amor, amor, olhe para mim, olhe para mim, eu não queria fazer isso".

Kyle, então com 21 anos de idade, foi encontrado apunhalado no peito em uma casa no bairro de Toxteth, em Liverpool. E a voz na ligação era de Fri, também com 21 anos.

A prima de Kyle, Cody Rowson, relembra o momento em que ficou sabendo da morte de Kyle depois de ele ter sido levado para o hospital. "Minha mãe me ligou histérica e ela sabia que Kyle tinha morrido. Todos os amigos dele estavam lá, a casa estava abarrotada de gente. Eu nunca havia visto tantos jovens chorando."

Cody sentada olhando para câmera em ambiente interno
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'Nunca vi tantos rapazes chorando', lembra Cody sobre morte do primo

Lauren Rowson conta que seu primo Kyle era como um irmão mais velho para ela. "Fizemos tudo juntos quando crescemos. Agora, [a mãe de Kyle] está vivendo sem seu único filho." E Cody acrescenta: "ele amava muito sua mãe".

No momento do incidente, Fri e Kyle tinham duas crianças com menos de três anos de idade. Ben Boylan, amigo de Kyle, afirma que "ninguém é perfeito, mas ele não merecia aquilo".

Quando a amiga de Fri, Cheryce Shaw, recebeu a visita da polícia, ela pensou que Fri estivesse ferida. "Minhas primeiras palavras para o policial no carro foram 'ele fez alguma coisa para ela?'"

Amor de infância

Fri e Kyle moravam na mesma vizinhança e se conheceram na escola primária. Depois de anos de amizade, eles se tornaram um casal quando tinham 16 anos de idade.

A mãe de Fri, Lyly Maughan, relembra o dia em que ela descobriu que eles estavam namorando. "Não sei se ela sabia o que era o amor, mas ela disse que o amava. Isso me fez dar um sorriso. Ela costumava se trocar duas, três vezes por dia. Sempre queria ficar bonita para ele. Ela estava radiante."

Já a família de Kyle disse que ficou chocada quando descobriu que ele tinha uma namorada. "Sua personalidade era irreverente, mas pessoalmente Kyle era muito tímido. E, por ser muito tímido, eu não achava que Kyle chegaria a ser capaz de falar com uma garota", relembra Cody.

Em uma postagem no Facebook em 12 de julho de 2012, Kyle anunciou que Fri estava grávida. Ele escreveu: "estou esperando uma menininha". E, pouco depois do nascimento da primeira filha, Fri ficou grávida pela segunda vez.

"Foi a época mais feliz da vida dele. Eles eram pais muito bons e acho que ninguém poderia dizer o contrário. As crianças eram bem cuidadas", acrescenta Cody.

Para a polícia, pouco depois que Kyle foi esfaqueado, Fri descreveu que tipo de parceiro ele era. "[Kyle] sabia ser amoroso. Ele me abraçava primeiro e me beijava primeiro. Quando estava bem, ele era bom. E era também um bom pai."

Depois do nascimento do primeiro filho, Fri e Kyle passaram a morar juntos. Mas os amigos e a família de Fri contam que foi ali que eles começaram a notar mudanças em Fri. Antes, ela era vibrante e calorosa, mas passou a ser introvertida e distante.

Farieissia Martin sorrindo em foto
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Depois de anos de relacionamento aparentemente feliz, amigos e parentes passaram a perceber mudanças no comportamento de Fri

Términos e voltas

"Ele estava sempre, sempre, sempre, sempre ligando para ela, enviando mensagens constantemente. Eu só pensava 'bem, ele realmente a ama. Ele não quer deixá-la sozinha'", relembra Lyly.

As pessoas que os conheciam começaram a notar que o relacionamento estava ficando tenso, mas, na época, achavam que era devido ao ajuste à paternidade.

"Eles tinham duas crianças muito pequenas, é difícil para qualquer pessoa. Então você acha que não deve ser algo preocupante", conta a amiga de Fri, Cheryce. "Ela ficava de moletom o tempo todo, nós íamos para a casa [deles] e ela ficava de pijama e você podia ver as mudanças de personalidade."

"Ela começou a ficar mais reservada. Não era a mesma Farieissia, era como se estivesse simplesmente à deriva", relembra outra amiga.

Até que Fri contou aos amigos sobre os abusos verbais que estava recebendo de Kyle. "Ela não se sentia atraente e achava que seu corpo estava destruído, porque estas eram algumas das coisas que ela estava ouvindo", segundo Cheryce.

Kylie Corner, amiga de Fri, conta: "você pode colocar maquiagem e ainda assim se sentir feia, porque é assim que você foi condicionada. Todos os dias, você está feia, você está gorda, você não tem valor."

Segundo Cheryce: "se você ouvir alguma coisa muitas vezes, especialmente quando está muito frágil, com seus hormônios alterados devido às crianças e outras coisas, é muito fácil acreditar nisso... pode abalar o seu ânimo. E é isso que ela parecia para mim, era uma sombra do que ela foi."

Kyle Farrell em retrato com olhar sério
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Kyle tinha 21 anos quando morreu

A família e os amigos de Fri e Kyle contam que o relacionamento do casal era inconstante e Kyle muitas vezes ia para a casa da mãe com um saco de dormir depois de uma discussão.

A tia de Kyle, Betty Rowson, disse à BBC: "nós falávamos 'de novo, não', mas ele sempre voltava para ela. Eu disse para ele muitas vezes 'ela não faz bem para você, livre-se dela', mas ele não fazia porque ele a amava."

Os amigos de Fri contam que ela sempre acabava perdoando Kyle após as discussões, até que algo partiu seu coração. Fri explicou para a polícia que ela havia descoberto que Kyle a havia traído e tinha um filho com outra mulher.

"Não importava qual fosse o motivo da discussão, podia ser algo bobo, tudo se reduzia àquilo", afirma ela.

Ela segue descrevendo como eles se separavam constantemente, até que começaram a sentir a falta um do outro. Eles acabaram por se falar de novo e voltaram a ficar juntos.

Lauren
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Lauren Rowson conta que ela e Kyle cresceram juntos

A prima de Kyle, Lauren, afirma que partiu seu coração saber que, depois da morte de Kyle, um teste de DNA revelou que a outra criança não era filha dele. "Isso definitivamente me faz questionar se ele ainda estaria vivo se essa notícia tivesse aparecido antes", afirma ela.

Confissão

No dia em que Fri esfaqueou Kyle, ela havia saído para compras de Natal com uma amiga enquanto ele cuidava das duas crianças.

Conforme o dia passava, Kyle ficava cada vez mais agitado e começou a apressar Fri para que voltasse para casa, enviando textos abusivos e ameaçadores.

Fri conta que voltou para casa para acalmar as coisas com Kyle e ele então concordou que ela fosse para a casa da amiga para beber alguma coisa. Mas, quando começaram a chegar as primeiras horas da manhã, Kyle ficou com raiva.

Explicando que ela não queria ir para casa, Fri contou à polícia: "eu estava inventando desculpas apenas para ficar um pouco mais... ele estava simplesmente furioso." Mas ela acabou voltando para casa.

Quando Fri foi questionada pela polícia pela primeira vez, ela mentiu sobre o que aconteceu em seguida, afirmando que alguém invadiu a casa e esfaqueou Kyle. A polícia então mostrou a gravação da sua chamada de emergência e Fri pediu um intervalo.

Quando retornou, ela disse: "antes de mais nada, quero pedir desculpas por ter mentido". Fri então contou à polícia que Kyle começou a brigar porque ela não comprou cigarros para ele no caminho para casa.

Ela disse que ele a agarrou pela garganta e, depois de empurrá-lo, ela alcançou uma faca. Ela avisou para que ele ficasse longe ou ela o esfaquearia. "Juro por Deus que eu não pretendia esfaqueá-lo", disse ela à polícia.

Depois de chamar a ambulância, Fri tentou esconder a faca fora de casa, mas ela acabou escondendo outra faca e não a que ela havia usado para esfaquear Kyle.

Cody afirma que, se Fri não tivesse mentido, talvez não tivesse sido presa.

"Ela não estava se protegendo. Se ele a estivesse sufocando tanto, ela teria se machucado um pouco. Não havia uma marca nela para dizer que ele estava fazendo alguma coisa com ela", segundo Cody.

A família de Fri acredita que ela mentiu sobre o que aconteceu naquela noite por medo de que as crianças fossem deixadas sozinhas, sem nenhum dos pais.

O abuso

Primeiramente, Fri contou à polícia que Kyle "às vezes era horrível com as palavras", mas não era violento. Mais tarde, ela disse que, às vezes, ele realmente batia nela.

"Acho que fiquei com vergonha por ele ser violento comigo e meio que permiti... ele me deixou com o olho roxo três vezes, ao todo", contou ela.

Fri acrescentou que ele a chutou na barriga enquanto estava grávida, socou e esburacou a parede e a segurou. "Eu reagi da mesma forma, é verdade. Mas ele era sempre mais forte que eu."

A prima de Kyle também se lembra de ver arranhões nele. "Sei que eram dela", afirma.

Fri criava desculpas para seus ferimentos, dizendo que o bebê a atingiu no olho, mas acabou contando a uma amiga. Ela relutou em ir à polícia, com medo de que seus filhos fossem tirados dela.

Lyli sentada e olhando para baixo
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Lyly, mãe de Fri, durante o julgamento da filha

O recurso

No dia 9 de junho de 2015, depois de um julgamento que durou duas semanas, o veredicto foi unânime. A procuradoria argumentou que Fri havia esfaqueado Kyle intencionalmente depois de uma noite bebendo na casa da amiga. Fri foi julgada culpada de assassinato e condenada à prisão perpétua, com pena mínima de 13 anos.

Na prisão, Fri acabou contando à família os abusos físicos e emocionais pelos quais havia passado. Sua família procurou a organização Justice for Women, que ajuda as mulheres que lutaram contra seus abusadores, e a advogada britânica Harriet Wistrich.

Atuando na defesa de Fri, Wistrich conseguiu uma avaliação psiquiátrica e psicológica para ela. Diversos relatos indicaram que Fri estava sofrendo de estresse pós-traumático na época do esfaqueamento, como resultado do controle coercitivo e da violência de Kyle. Eles também observaram os impactos mentais causados pelo estupro que ela sofreu de um amigo da família quando tinha 15 anos de idade.

Durante o julgamento inicial, o histórico de violência doméstica não foi explorado e a saúde mental de Fri não foi avaliada. Essas duas questões fizeram parte da base do recurso contra a condenação e sentença de Fri.

Quando a família de Kyle soube do recurso, foi um choque imenso. Lauren conta que a possibilidade da condenação de Fri ser alterada para homicídio culposo (involuntário) deixou a família dele "arrasada".

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O recurso apresentou exames e novas evidências sobre o caso

O recurso de Fri foi apresentado em dezembro de 2020 e a condenação por assassinato doloso foi anulada em maio de 2021.

Cinco meses depois, no dia do novo julgamento, foram apresentadas fotografias tiradas pela polícia. Elas mostravam lesões no rosto e no pescoço de Fri, que nunca haviam sido mostradas para o júri original e confirmavam a afirmação de Fri de que Kyle a estava estrangulando na noite em que ela o matou.

As novas evidências permitiram que Fri respondesse por homicídio culposo, que tem pena mais leve. E, sete meses depois, Fri foi libertada.

Para Cheryce Shaw, "não importa de que lado você esteja, [o que aconteceu] é uma tragédia para as duas famílias".


Como denunciar violência doméstica no Brasil?

No Brasil, o 190 é número de telefone da Polícia Militar que deve ser acionado em casos gerais de necessidade imediata ou socorro rápido. A ligação é gratuita. Outros números são o 192, do serviço de atendimento médico de emergência, e o 193, do Corpo de Bombeiros.

Por meio do Ligue 180, é possível entrar em contato com a Central de Atendimento à Mulher, que é um serviço gratuito e confidencial. Ele funciona para "receber denúncias de violência, reclamações sobre os serviços da rede de atendimento à mulher e orientar as mulheres sobre seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para outros serviços quando necessário".

Pelo Disque 100, que também é uma ligação gratuita e funciona 24 horas, é possível fazer denúncias de violações de direitos humanos — entre elas, as que têm crianças e adolescentes como vítimas. Segundo o governo, o serviço "pode ser considerado como 'pronto-socorro' dos direitos humanos e atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante".


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