Nas entrelinhas do enredo sinistro que descreve o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari, o que se revela é a teia de ilegalidade tecida na Amazônia brasileira desde a virada do século. O que se insinuava como ameaça em 2000/2001 emerge agora como os monstros e os fantasmas que escondemos no porão, com a ilusão de que desapareçam como por encanto.
Ao contrário, eles se nutrem justamente da escuridão. E, quando já não é possível tapar os olhos, enxergamos a dimensão real — e, em geral, assustadora — da ameaça que espreita. Não que estivéssemos todos cegos: Bruno e Dom estão (recuso conjugar o verbo no passado) entre os que se empenharam em investigar, expor e denunciar a presença ameaçadora do crime organizado nessa região especialmente vulnerável, extremo de território na esquina com Colômbia e Peru, onde fronteiras nacionais desenhadas nos mapas somem sob a mata e se diluem nos rios e igarapés.
A brutalidade da emboscada e execução dos dois ativistas escancarou, para quem não via ou — pior — se recusava a ver, que uma guerra surda e suja se trava diariamente à sombra dos igapós.
Yes, nós temos
Não é de hoje que a região de Atalaia do Norte e Tabatinga, nos limites ocidentais do Amazonas brasileiro, se apresenta como terreno propício para operações ilegais. Em meados dos anos 1970, um oficial do Exército Brasileiro — meu pai — recém-transferido de São Paulo para o Batalhão de Fronteira de Tabatinga manifestava preocupação com a presença de narcotraficantes na cidade-gêmea colombiana de Letícia.
Nesse meio século, a dinâmica e a geopolítica do narcotráfico e do crime organizado passaram por mudanças drásticas. Nas décadas de 1980 e 1990, davam as cartas os cartéis colombianos da cocaína, de Medellín e de Cali. Na entrada dos 2000, já quem assumia posições estratégicas no negócio eram os cartéis mexicanos.
Soberanos nas rotas do Pacífico, com destino ao mercado dos EUA, os órfãos de Pablo Escobar deixaram vácuos para quem pudesse explorar rotas alternativas pelo Atlântico. As facções criminosas brasileiras, em franca ascendência graças à presença expressiva no Paraguai, entreposto de armas e drogas, enxergaram a ocasião. Hoje, temos nossos "cartéis" made in Brazil.
Galo cantou
As primeiras "guerras" do tráfico nos morros do Rio, no fim dos anos 1980, serviam de alerta. Mas, em 2001, quem acompanhava e investigava o desenvolvimento do crime organizado no Brasil teve um sinal inequívoco de emergência quando Fernandinho Beira-Mar foi capturado pelo Exército colombiano em região de selva, não muito distante da fronteira brasileira na região da Cabeça do Cachorro.
Tão importante quanto a presença do traficante de Duque de Caxias (RJ) na área, onde o lado colombiano da fronteira era patrulhado pela guerrilha das Farc, é o roteiro da sua chegada. Beira-Mar vinha de escapar da prisão, em Minas, pela porta da frente. Fugiu para o Paraguai, onde disputava com gangues locais as plantações de maconha e as rotas de cocaína e armas.
Depois de um tira-teima sangrento com rivais locais, desembarcou na Colômbia tendo como cartão de visita um lote de fuzis que ofereceu à guerrilha. Passou a operar não apenas rotas para escoar cocaína pela Amazônia, mas para fornecer às Farc armas trazidas do Paraguai e do Suriname.
Geleia geral
De lá para cá, o movimento a que assistimos foi a "colonização" do extremo oeste do Amazonas, de Tabatinga (sul do estado) a São Gabriel da Cachoeira (norte), pelas facções criminosas do Rio de de São Paulo. Em aliança ou disputa com gangues locais, nossos "cartéis" entrelaçam todo tipo de atividade ilegal em uma porção do território historicamente negligenciada.
Ao fluxo de drogas e armas, enredado ao conflito armado político-social de meio século na Colômbia, somam-se o garimpo e a pesca ilegais e a biopirataria pura simples. O traço singular mais marcante, de Tabatinga a Manaus e além, é a ausência do Estado brasileiro. Nesse vácuo, a ilegalidade prolifera sem balizas.
"Boca de Matilde"
Do ponto de vista da diplomacia brasileira, o episódio envolvendo o assassinato de Bruno e Dom, com requintes de barbaridade sistemática que até ontem restava determinar, em toda a extensão, caiu sobre o país como um meteorito devastador. O desaparecimento assombrou a passagem do presidente Jair Bolsonaro pelos EUA, para a Cúpula das Américas — onde o anfitrião, o presidente Joe Biden, fez da agenda ambiental um dos focos do debate. Agências da ONU e organizações internacionais, humanitárias ou ambientais, não pouparam esforços para cobrar do governo brasileiro investigação profunda e abrangente. E a punição dos responsáveis — incluindo mandantes.
Uma vez mais, como se tornou frequente desde 2019, o Brasil se destaca no noticiário internacional como foco de preocupação. Como é corrente nas conversas entre vizinhos por cima dos muros, o nome do país "anda em boca de Matilde".
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