Reino Unido

Eleição de substituto de Boris Johnson deve ocorrer depois de setembro

Pressionado pela demissão de dezenas de assessores, o premiê conservador renuncia e avisa que seguirá no cargo até a escolha do sucessor, mas não terá apoio para decisões importantes. Eleição de substituto deve ocorrer depois de setembro

Era uma vez um primeiro-ministro que ousou tentar ser como Winston Churchill — premiê por duas vezes (1940-1945 e 1951-1955) —, mas acabou traído por seus próprios erros e se viu engolido por uma revolta dos aliados. Às 12h30 de ontem (7h30 em Brasília), Boris Johnson não resistiu à pressão interna. Diante de Downing Street, residência do governo, ele renunciou à liderança do Partido Conservador e afirmou que ficará no cargo até a escolha de um novo primeiro-ministro. Até que isso ocorra, Johnson não contará com apoio para tomar decisões fiscais nem para implementar novas políticas. "É claramente a vontade da bancada parlamentar que deve haver um novo líder daquele partido e, portanto, um novo primeiro-ministro", declarou Johnson. 

Sem demonstrar emoção, ele atacou os membros do próprio Partido Conservador, depois que mais 60 assessores e ministros pediram demissão. "Como temos visto em Westminster, o rebanho é poderoso. E quando o rebanho se move, ele se move... E, meus amigos, na política ninguém é remotamente indispensável", afirmou.

Boris Johnson caiu em desgraça depois da nomeação de Chris Pincher para um cargo parlamentar importante. Pincher, um conservador, confessou ter apalpado dois homens, entre eles um deputado, em um clube privado, no centro de Londres. A própria Downing Street reconheceu que Johnson sabia de acusações contra Pincher, mas tinha se "esquecido" delas quando o nomeou. 

A eleição interna no Partido Conservador para substituir Johnson somente deve ocorrer a partir de outubro. No fim da noite, o presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Comuns, Tom Tugendhat, foi o primeiro conservador a oficializar a candidatura. Mais cedo, ele elogiou Johnson por renunciar e citou os feitos do premiê. "Ele entregou o Brexit (divórcio com a União Europeia), impulsionou as vacinas e liderou sobre a Ucrânia. Agora, precisamos de um começo limpo", pediu, nas redes sociais. 

Uma pesquisa feita pelo instituto YouGov com membros do partido, ontem, indica algumas tendências de candidatos. Ben Wallace,  52 anos, ministro da Defesa, venceria todos os outros potenciais adversários. Atrás dele, aparecem como bem cotados a secretária de Estado do Comércio Exterior, Penny Mordaunt, 49.  O líder do opositor Partido Trabalhista, Keir Starmer, classificou a renúncia de Johnson como uma "boa notícia", mas defendeu uma "verdadeira mudança de governo". Ele não descarta pedir a apreciação de uma moção de censura para forçar a convocação de eleições gerais antecipadas. 

Especialista em Constituição pela Faculdade de Política Pública da University College London, Robert Hazell admitiu ao Correio que o Reino Unido enfrenta uma crise de liderança desde 2010. "Houve um fracasso de comando com os premiês David Cameron, Theresa May e, agora, com Johnson", disse. Ele apontou os principais problemas do chefe de governo demissionário. "Eu diria que a falta de integridade e o desafio às convenções; o que significa que ninguém podia acreditar nele."

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Dupla votação

De acordo com Hazell, o processo para a eleição do novo líder do Partido Conservador envolve duas etapas. "Em primeiro lugar, os parlamentares realizam uma série de exaustivas votações para escolherem os dois principais candidatos. Depois, os membros do partido escolhem um dos dois candidatos. O processo todo leva pelo menos dois meses", comentou. Na opinião dele, além de Ben Wallace e de Peny Mordaunt, o ex-ministro da Defesa Rishi Sunak e a chefe da diplomacia britânica, Liz Truss, também são fortes nomes.

Após a renúncia de Johnson, Truss publicou um tuíte a partir da Indonésia, onde participará de uma reunião do G20, e instou o Reino Unido a agir com tranquilidade. "Precisamos de calma e unidade agora e continuar governando, até que um novo chefe do partido seja nomeado", declarou.

Diretor do Departamento de Economia Política do King's College London, Andrew Blick prevê tempos turbulentos. "Nós veremos quatro primeiros-ministros em pouco mais do que seis anos. Essa rotatividade está relacionada a tensões dentro do Partido Conservador. O Brexit, supostamente, era supostamente para resolver tais disputas; mas os sinais são de que elas se agravaram. Em 2019, Johnson foi escolhido líder porque julgaram ser ele a única pessoa capaz de reconciliar as diferenças e ganhar uma eleição", disse ao Correio

Para Blick, os principais fracassos de Johnson foram a incapacidade em conter suas próprias fraquezas e em agir de acordo com as regras. "Provavelmente, isso era algo inevitável, ante a personalidade dele", admitiu. O estudioso considera difícil prever quem são os potenciais nomes a ocupar 10 Downing Street e cita a existência de questões complexas envolvendo as prioridades dos conservadores que votam. 

Por sua vez, Nick Turnbull, professor de política da Universidade de Manchester, criticou Johnson por levar apenas partes do trabalho a sério. "Faltou-lhe inteligência política em cultivar um apoio político suficientemente amplo na bancada parlamentar. Tudo isso somado a um mandato muito curto, de apenas alguns anos, e uma partida ridícula", avaliou à reportagem. Turnbull aponta o acordo do Brexit como o principal legado de Johnson. "Para os adeptos do divórcio com a União Europeia, foi um grande sucesso. Mas, se observarmos os dados econômicos, veremos que o Brexit não pareceu exitoso."

O presidente dos EUA, Joe Biden, assegurou que Washington manterá uma "cooperação estreita" com Londres. "O Reino Unido e os EUA são os amigos e aliados mais próximos, e a relação especial entre os nossos povos continua sendo forte e duradoura", afirmou o democrata, em nota que não mencionou Johnson.

Trechos do discurso de renúncia

"É claramente a vontade da bancada parlamentar que deve haver um novo líder daquele partido e, portanto, um novo primeiro-ministro."

"Eu hoje nomeei um gabinete para servir, assim como eu, até que um novo líder esteja no lugar."

"A razão pela qual eu lutei tanto nos últimos dias para continuar entregando esse mandato pessoalmente não foi apenas porque eu queria fazê-lo, mas porque senti que era meu trabalho, meu dever, minha obrigação com vocês, continuar fazendo o que prometemos em 2019".

"Nos últimos dias, tentei convencer meus colegas de que seria uma excentricidade mudar o governo quando estamos fazendo tanto e quando temos um mandato tão amplo. (...) E lamento não ter tido sucesso com esses argumentos, e é claro que é doloroso não ser capaz de realizar tantas ideias e projetos."

"Claro que estou imensamente orgulhoso das conquistas deste governo. Desde a conclusão do Brexit até o estabelecimento de nossas relações com o continente por mais de meio século, recuperando o poder deste país para fazer suas próprias leis no Parlamento, a superação da pandemia; a implantação mais rápida de vacinas na Europa, a saída mais rápida do confinamento e, nos últimos meses, liderando o Ocidente contra a agressão de Putin na Ucrânia."

"Meus amigos, na política, ninguém é remotamente indispensável. E nosso sistema brilhante e darwiniano produzirá outro líder igualmente comprometido em levar este país adiante em tempos difíceis."

"Para esse novo líder, seja ele ou ela quem for, digo: darei todo o apoio que puder."

"Quero agradecer a vocês, britânicos, pelo imenso privilégio que me deram.  E quero que saibam que, de agora em diante, até que o novo primeiro-ministro esteja no cargo, seus interesses serão atendidos e o governo do país vai continuar."

"Ser primeiro-ministro é uma educação em si mesmo." 

O último escândalo

Após a polêmica e luxuosa reforma de seu apartamento oficial em Downing Street, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e sua esposa, Carrie, correm o risco de ficar sem casa e ter que encontrar um novo local para sua festa de casamento. O casal se uniu em Downing Street em maio de 2021 em uma pequena cerimônia, devido às restrições sanitárias. Superada a pandemia, uma recepção mais glamourosa foi marcada para o próximo dia 30 em Chequers (foto), a casa de campo dos primeiros-ministros a noroeste de Londres. Jornais como o Daily Mirror e The Guardian, entre outros, garantiram que Johnson não quer perder o acesso a Chequers antes da festa, cujos convites já foram enviados.

Uma das primeiras a saber

A rainha Elizabeth II está entre as primeiras pessoas a serem informadas de que Boris Johnson se preparava para anunciar a renúncia como primeiro-ministro. Segundo a agência de notícias britânica PA Media, Johnson fez um telefonema de cortesia para a monarca, pela manhã. Elizabeth II estava no Castelo de Windsor. 

A crítica de John Major

John Major (foto), primeiro-ministro do Reino Unido entre 1990 e 1998, enviou uma carta a Sir Graham Brady — chefe do Comitê 1922, a bancada parlamentar conservadora — e advertiu que a decisão de Johnson de permanecer no cargo é "imprudente" e "insustentável". "Em tal circunstância, o premiê mantém o patrocínio e, motivo de preocupação ainda maior, o poder de tomar decisões que afetarão a vida" (dos britânicos), escreveu Major. "Pelo bem-estar geral do país, Johnson não deveria permanecer em Downing Street — quando é incapaz de conquistar a confiança da Câmara dos Comuns — por mais tempo do que o necessário para efetuar a transição suave do governo."

Bolsonaro e Ciro citam demissão

Em conversa com simpatizantes, do lado de fora do Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro citou a renúncia do primeiro-ministro. "O Boris Johnson acabou de pedir demissão lá", afirmou. Apesar de não ter comentado a notícia, Bolsonaro perguntou: "Estão vendo como está o mundo, pessoal, e como é que está o Brasil?". Por sua vez, Ciro Gomes, pré-candidato à Presidência pelo PDT, não poupou críticas a Johnson e a Bolsonaro. "Semeador de crises, cascateiro contumaz, trumpista defasado, negacionista de primeira hora (arrependido), cúmplice de agressor sexual, caiu o chefe de governo! Bolsonaro? Não, Boris Johnson! Já vai  tarde. O daqui irá em breve", escreveu no Twitter. 

Eu acho...

"O governo de Boris Johnson foi um desastre. Ele nomeou um gabinete baseado na lealdade, não na habilidade. Eles ficarão tão obcecados com o Brexit, que nada mais alcançaram. Em particular, não fizeram progresso em sua 'agenda de nivelamento', a fim de reduzir a desigualdade regional, o que era outra assinatura de sua política."

Robert Hazell, especialista em em Constituição pela Faculdade de Política Pública da University College London