Argentina

Reação do governo Bolsonaro ao atentado contra Kirchner mostra isolamento

Presidente cita facada, em 2018, e diz que a esquerda não se solidarizou com ele após ataque. Manifestação do governo ocorreu 19 horas após atentado. Especialistas avaliam a postura do Planalto e do Itamaraty e advertem sobre isolamento

Rodrigo Craveiro
postado em 03/09/2022 06:00 / atualizado em 03/09/2022 14:43
 (crédito: Silvio Avila/AFP)
(crédito: Silvio Avila/AFP)

Demorou 19 horas a resposta oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil sobre o atentado sofrido por Cristina Fernández de Kirchner. "O governo brasileiro condena o injustificável ato de agressão contra a vice-presidente da República Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, ocorrido na noite de ontem, 1º de setembro, em Buenos Aires", afirma a nota, divulgada às 16h de ontem. "O Brasil repudia toda e qualquer forma de violência com motivação política e reitera seu invariável respaldo à irmã nação argentina."

O silêncio de Jair Bolsonaro foi quebrado após o presidente ser perguntado sobre o tema por um jornalista, durante visita à Expointer, uma das principais feiras do agronegócio do Brasil, em Esteio (RS).

A resposta repercutiu negativamente, tanto no Brasil quanto na imprensa argentina. "Já mandei uma notinha, lamento. Agora, quando levei uma facada, teve gente que vibrou por aí, né? Tá? Lamento. Já tem gente botando na minha conta esse problema", afirmou o presidente, pela manhã. "O agressor ali, ainda bem que não sabia mexer com arma. Se soubesse, teria sucesso no intento", acrescentou. Em outro momento, disse a jornalistas que "é um risco que todo mundo corre". "Eu quase morri em 2018 e não vi a esquerda se preocupando comigo", afirmou.

O candidato à reeleição voltou ao tema em uma terceira ocasião, no mesmo evento: "Já falei que lamento, apesar de não ter nenhuma simpatia por ela, não desejo isso para ela; agora, quando eu levei a facada, esse pessoal da esquerda ficou calado, mas tudo bem, nós temos coração, queremos o bem." Ele disse esperar a apuração do crime, para saber se o brasileiro Fernando André Sabag Montiel agiu "da cabeça dele, ou de alguém que teria, porventura, contratado ele para fazer isso". 

Distanciamento

Para Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM-SP, a forma como Bolsonaro e o Itamaraty responderam ao atentado contra Cristina é "mais um episódio que coloca o Brasil em posição de distanciamento com vizinhos, especialmente Argentina, Chile e Colômbia". "Isso reforça a visão negativa que os países da região têm com relação ao governo brasileiro. Vejo uma política externa cada vez mais distante dos princípios que regem a diplomacia brasileira desde a época do Barão do Rio Branco", avaliou, por telefone. "É lastimável que a gente continue com esse tipo de posicionamento, especialmente em uma situação de agravamento da polarização e da violência política na região."

Por sua vez, o cientista político Facumdo Nejamkis, diretor da Opina Argentina — empresa de pesquisas políticas baseada em Buenos Aires — disse à reportagem que a reação de Bolsonaro não parece um "lamento genuíno". "Ele citou supostos episódios do passado, colocando um manto de dúvida sobre a próprio lamento. Não creio que corresponda a uma figura tão importante, do ponto de vista institucional, como é o presidente do Brasil, reagir ao declarar que Cristina Kirchner não se pronunciou sobre a facada de 2018."

Professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA), Facundo Gabriel Galván minimizou a reação de Bolsonaro ao ataque frustrado contra Cristina Kirchner. "Em um primeiro momento, a mídia argentina nem citou a nacionalidade do autor do atentado. A realidade é que as relações entre Bolsonaro e o governo de Alberto Fernández não são boas. Isso não mudará depois desse incidente. Creio que as relações se manterão ao nível mínimo e nada mais", avaliou, por telefone. 

Condenação

Ao contrário do Brasil, a indignação de outros países e personalidades ante a tentativa de assassinato contra Cristina Kirchner não demorou a tornar-se pública. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, sublinhou que "a violência não pode ser tolerada, sob nenhum conceito". "Minha solidariedade à senhora Cristina Fernández e a todo o povo argentino diante do atentado", escreveu no Twitter. Também por meio da rede social, Mario Abdo, líder do Paraguai, afirmou que se solidariza com a Argentina. "Nós nos unimos a todas as vozes que repudiam a violência e exigem justiça", declarou. 

Segundo Gabriel Boric, presidente do Chile, a tentativa de assassinato de Cristina "merece o repúdio e condenação de todo o continente". "Minha solidariedade a ela, ao Governo e ao povo argentino. O caminho sempre será o debate de ideias e o diálogo, nunca as armas ou a violência", pontuou. O peruano Pedro Castillo reiterou que sua nação "repudia todo o ato de violência" e condena o atentado. Gustavo Petro, presidente da Colômbia, considerou o ataque de quinta-feira à noite como "fruto de um sectarismo que se converte em violência". De acordo ocm ele, "tornou-se uma prática latino-americana pensar que a política é a eliminação física ou legal do adversário". "Tal prática é puro fascismo. A política deve ser liberdade", frisou. 

O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse que os Estados Unidos condenam veementemente a tentativa de assassinato. "Apoiamos o govrerno e o povo argentinos na rejeição da violência e do ódio", anunciou. O português António Guterres, secretário-geral da ONU, se disse "chocado" com a notícia, condenou a violência e expressou solidariedade para com Cristina, o governo e o povo da Argentina.  

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Facundo Nejamkis, diretor da Opina Argentina — empresa de pesquisas políticas baseada em Buenos Aires
Facundo Nejamkis, diretor da Opina Argentina — empresa de pesquisas políticas baseada em Buenos Aires (foto: Arquivo pessoal )

"Há uma dificuldade do chanceler Carlos Alberto França de equilibrar o que seria uma resposta da posição tradicional do Brasil, nesse tipo de situação, e essa política beligerante, muitas vezes de agressividade, no discurso que Bolsonaro representa e reforça. A nota do Itamaraty mantém o desgaste do Brasil e não traz elementos para reduzir esse desgaste. Ao contrário, contribui ainda mais para a percepção de que o Brasil tem uma política que atravessa a sua tradição."

Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM-SP

"Bolsonaro é um tipo de liderança incapaz de sair da lógica do conflito, mesmo em momentos nos quais a maior parte dos dirigentes se abstrai das diferenças e trata de buscar consenso. Na Argentina, todos os políticos superaram diferenças e adotaram uma posição de repúdio. Sempre esperamos uma boa relação com um país tão próximo, mas não havia expectativa de uma resposta melhor do Brasil."

Facundo Nejamkis, cientista político e diretor da Opina Argentina, empresa baseada em Buenos Aires

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